segunda-feira, 13 de julho de 2020

Arte levada ao extremo


*Publicado nesta data em coletiva.net
O filme Jexi, um celular sem filtro é  uma comédia que recomendo por dois motivos: tem realmente momentos de humor e é uma amostra de como se comporta quem alimenta os portais de informação, especialmente se for de entretenimento e sobre famosidades.  É a história da relação do personagem  Phil (Adam Devine) com seu novo celular, que se transforma num pesadelo tecnológico quando o programa artificial do aparelho fica obcecado por ele. Jexi é a voz da assistente virtual, supostamente feminina como a Siri da Aple, a Cortana da Microsoft, a Alexa da Amazon, as mais demandadas. 

O filme faz uma crítica bem humorada ao vício ligado às novas tecnologias e aos ambientes que produzem conteúdos sem conteúdo, e vale a redundância, de portais especializados em besteirol,  de grande aceitação em determinadas camadas da população, tanto assim que são repicados sem dó,  inundando  as redes sociais.  A academia chama isso de fait divers, termo criado por Roland Barthes para fatos superdimensionados que, em outras circunstâncias, não mereceriam tratamento jornalístico. Primo-irmão das fake news.

No caso de Jexi, a cobrança do chefete na redação do portal é pela produção de listas virais, tipo “Famosas que morreram sem que você soubesse” ou “As mulheres de Harry Potter 20 anos depois; veja as fotos”.  Phil é craque nisso e fico imaginando, se não fosse ficção, o que acontece quando ele ou um colega consegue uma boa sacada, que vai viralizar e garantir muitos likes. Deve ter bateção de sino e euforia entre os envolvidos, como ocorria nas redações que frequentei quando criávamos a manchete ou o título perfeito,  forte, atraente e elucidativo em 36 caracteres ou em duas linhas de 20 letras, cuidando com os “m” que ocupavam  mais espaço do que as outras letras. Só não havia sino.
Trata-se de uma arte que foi levada ao extremo pelo viés  sensacionalista, escrachado, ambíguo, para dizer o mínimo, dos jornais popularescos, repletos de notas de sexo, crimes e de causas de interesse do  povão. No Rio era  o trio composto por  A luta Democrática, O Dia e Última Hora e, em São Paulo,  o Notícias Populares, que disputavam  nos anos 1950 e  60 qual deles faria a chamada de capa mais “vendável” pelos jornaleiros, no tempo em que existiam jornaleiros.

Eram conhecidos também como os diários que “se espremer, sai sangue”,  assim, no popular, como convém.  Sem citar os veículos,  coisas do tipo “Ciumento manda bala na mulher e atira no próprio bilau”, ou “Maluco abre cova e rouba pé da defunta”. O deboche cruel  faz parte, como nestas: “Vovozona vai ter filho com netinho” ou “Roubou cabelo da esposa para comprar crack”, ou ainda “Três homens apaixonados por uma égua”.  E tem as  antológicas “Cachorro fez mal a moça”, na verdade, uma notícia (sic) sobre a indisposição  provocada por um cachorro quente, e a “Violada no auditório”, nada a ver com sexo no palco, mas sobre o gesto irritado do compositor Sérgio Ricardo de jogar o violão na plateia que vaiava sua música no Festival da Record, ,em 1967. Espero não tê-los chocado com os exemplos, mas eles  são ilustrativos e teria coisa pior.

O site Sensacionalista  mantém essa tradição, digamos, burlesca, com a ressalva de que não está tratando de casos reais. Dois exemplos: “Saci com duas pernas sofre bullyng” e, claro, o presidente não poderia escapar: “Bolsonaro se irrita com Guedes por falar mais merda  que ele.”. O detalhe é que tem gente que ainda acredita. De certa fora e mais contido,  o jornal Meia Hora, do Rio, é remanescente hoje do chamado jornalismo popularesco.

Não é preciso muito aprofundamento acadêmico para relacionar esses formatos editoriais do passado com muitos dos produtos digitais originários dos ambientes mostrados em Jexi. Quem é do ramo sabe que hoje os responsáveis pelas edições on line dos principais grupos  de comunicação orientam seus redatores e colunistas sobre o uso de determinados assuntos e palavras nos textos e nas chamadas, porque assim  garantirão mais likes, bombando a matéria. Esse é  o sonho de consumo dos envolvidos no processo e o que justifica chamadas do tipo “Valor das dívidas de Carlinhos Brown é inacreditável”, ou “Homem salvou uma criatura debaixo da cama sem saber o que era”, criando  uma expectativa sobre a matéria que não  vai se confirmar na leitura. É também o caso daqueles links patrocinados, travestidos de notícia, como “Anvisa libera pílula que estica a pele velha depois de 40 anos de idade”, sem informar quando e como a agência liberou o mágico produto, que “virou febre em Porto Alegre” (a cidade varia)  e  que é defendido pela “famosa dermatologista” dra. Luciana (sem sobrenome) e por depoimentos de meia dúzia de consumidoras. Não faltam apelos eróticos como “Cléo Pires posa de maiô cavado e seguidores vão à loucura nas redes sociais” e mais esta “Luana Piovani frequenta bordel em Portugal: Sou  apaixonada!”. Como resistir a estas chamadas?

Até eu, macaco velho, que só cozinho na terceira fervura e em  panela de pressão,  embarco nessas furadas de vez em quando. Na verdade, sou  um cortejador  de banalidades e, como invejoso assumido e despudoradamente fascinado por estes titãs das baixarias e suas manifestações, admito minha inferioridade intelectual  em relação a eles,  que fazem do pouco ou do nada, do trivial, ordinário e efêmero, uma atraente sacada.  Assim, rendo minhas homenagens aos sensacionalistas em geral e aos caçadores de likes em particular,  sem juízos  de valor ou de mérito, porque  até pra banalidade o popularesco criativo tem que  ter talento, eu diria  muito talento


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