sábado, 23 de abril de 2016

Interposta Pessoa e outras outras

O repertório linguístico dos amantes é amplo e criativo. Acho que até já escrevi sobre isso. Um relacionamento legal impõe uma comunicação diferenciada e, na maioria dos casos, o casal estabelece códigos para se fazer entender e reafirmar seu amor. A primeira providência é batizarem um ao outro com apelidos carinhosos, quando não escorregam para o ridículo. Aí vale tudo e reinam os diminutivos: Fofurinha, Bijuzinho, Morzinho, Neguinha, Tchutchuquinha. Os mais sofisticados preferem expressões em outro idioma: Cherry, Amore Mio, Honny, Darling. É um dengo só e homem vira piegas nessas circunstâncias.

Outro dia, um dedicado companheiro, acostumado às puladas de cerca, revelou o tratamento que dispensa as suas novas parceiras. São as Interpostas Pessoas! Interposta Pessoa tem um significado um tanto de jurisdiques, grosso modo, uma terceira pessoa que se intromete em outra relação. Tudo a ver em se tratando da Outra. Mas a forma como Interposta Pessoa é pronunciada pelo sujeito em questão, beirando a reverência, significa, acima de tudo, uma blindagem. Quem desconfiaria que o termo pode esconder uma pessoa real, capaz de proporcionar grandes emoções e impensáveis prazeres? O companheiro não entra em detalhes, apenas suspira fundo e acrescenta:

- É bem bom!

A propósito, resgato um texto a respeito do tema:

Como ocorre com todos os idiomas, a linguagem da infidelidade também é um processo em constante mutação. O termo amante, por exemplo, caiu em desuso. Ou como diria aquele empresário bem de vida e algo preconceituoso: “Amante é coisa de despossuído. Rico tem namorada”. Preconceitos à parte, a verdade inescapável é que dificilmente você vai ouvir, hoje em dia, alguém dizer que vai ao encontro “da amante”. O termo ficou chulo e brega. Visitar a “outra” ou “aquela outra” até passa. Ouço eventualmente a expressão “pessoa” e sua variação “aquela pessoa” e implico com isso, sei lá porque. Talvez porque existam eufemismos mais apropriados para o caso. Um deles é designar a pessoa em questão pelo realce profissional. Observe o exemplo e constate como fica elegante na frase: “Com licença, mas preciso sair porque tenho um encontro com a Doutora”. Vocês já sacaram quem é a doutora, que pode ser aplicado tanto para profissionais da área médica como do direito. Outro exemplo na mesma linha: “A professora me espera”. No caso, pode ser realmente uma mestra do saber ou uma homenagem do homem aos conhecimentos da parceira, por assim dizer, em outra matéria.

A tribo dos infiéis é criativa e inventa toda a sorte de artimanhas para escapar de questionamentos incômodos. Conhecido repórter, por exemplo, só escreve os telefone de suas novas conquistas em linhas verticais. Para todos os efeitos é uma operação de somar, se a anotação cair em mãos indevidas. Um sistema simples e eficaz.

Os códigos mereceriam um capítulo à parte. S. operador da bolsa de valores, certamente influenciado pela sua atividade, só marcava encontros com a companheira por meio de mensagens codificadas, enviadas por telefone ou por e-mail. “Cotação: MA-1830”. Tradução: Encontro às 18h30 no Motel A. Ou: “Índice Bovespa: RB-2100+MC”. Tradução: jantar no restaurante B às 9 da noite e depois esticada ao motel C. A cada letra correspondia um motel ou restaurante já conhecidos, então ficava fácil decodificar a mensagem. A resposta da parceira vinha na mesma linha. Se estava disponível avisava: “É hora de comprar”. Caso contrário, informava: “Venda as ações”. O único receio deles é que viesse a mensagem, previamente combinada, significando que tinham sido descobertos: “Crack da Bolsa!”

J, desportista, também utilizava linguagem apropriada a sua área de atuação. A mensagem “Hoje, 100 metros rasos”, significava disposição para uma rapidinha. Já “Amanhã Maratona” era a forma de dizer que estava preparado para uma grande noitada. As respostas às vezes eram desestimulantes, tipo “100 metros com barreiras”, quando a parceira dava conta de que ele podia pedir o que quisesse, mas não levaria tudo. O policial M. cifrava suas mensagens à namorada igualmente com as expressões que estava acostumado a usar no dia a dia. Exemplo: “Hoje acareação, 19, local do crime”. Tradução: encontro às 7 da noite no mesmo motel de sempre. Quando não podia comparecer aos encontros, avisava: “Elemento fugou” era a senha.


Acreditem: esses exemplos são reais e mais frequentes do que imagina nossa vã filosofia.

domingo, 10 de abril de 2016

Era bom!

* Publicado originalmente em 17.08.2011, mas atual como nunca

Estou empenhado em reunir um bom número de pessoas, preferencialmente homens, em torno de uma confraria que será denominada de “Era bom!”. Não haverá qualquer preconceito quanto à idade dos participantes, mas acredito que o mote que vai nos reunir não será atraente para os mais jovens.

A proposta é ensejar o encontro de pessoas que tem em comum o fato de terem abdicado de um dos melhores prazeres que a vida pode nos proporcionar e para isso é preciso ser firme nas decisões, o que requer maturidade. É coisa para sessentões ou mais. O peso dos anos exige cuidados extremos no enfrentamento de certos desafios. A resposta do nosso corpo não é a mesma de anos atrás quando traçávamos o que vinha pela frente. Nem a evolução da medicina, com suas panaceias, consegue minimizar os efeitos danosos de uma extravagância, a demandar esforços que os nossos órgãos não podem suportar.

Temos que ter consciência dos nossos limites, fugir às tentações. Por isso, ao criar a “Confraria do Era Bom” já vamos lançar o nosso slogan: gordura, nunca mais! Vocês pensaram que era sobre aquilo, né?!

Adesões em aberto no Via Dutra.

domingo, 3 de abril de 2016

Memórias póstumas

Da mesa ao lado, Marivalda dispara:

- Vô, nunca pensou em escrever tuas memórias?

A bem da verdade a pergunta não me pegou de surpresa. Desde que o ViaDutra foi ao ar, seis anos atrás, só o que tenho feito é resgatar vivencias, mais boas do que ruins, mais divertidas do que frustrantes, mais emocionais do que racionais. Mas muita coisa ainda pode ser contada e certamente é isso que move a indagadora Marivalda.

- Eu falo daquelas situações escabrosas em que tu estivestes  envolvido -, provoca ela.

Sou obrigado, então, a fazer uma revelação que pretendia tornar pública bem mais tarde. Premido pelas circunstâncias, uma vez que todas as mesas ao lado ficam em suspense a espera de uma declaração definitiva, abro o jogo:

- Já conclui minhas memórias, mas como tem muita gente envolvida e vou contar tudo, apontar nomes e situações, só autorizei a publicação cinco anos após meu passamento.

Preferi usar a expressão meu passamento porque achei mais adequada do que falar em morte, mas isso não impactou o ambiente e, sim, o fato de que revelações estarrecedoras prometidas pelas memórias póstumas poderão tardar muito tempo. É que, se depender das condições de saúde, meu passamento vai demorar.

- Pô, adianta alguma coisinha pra nós -, apela um

- Isso é crime de lesa informação, sonegar fatos importantes –, alega o outro jornalista presente.

- Pelo jeito tem gente muito importante envolvida. Homens e mulheres? -, tenta a moça curiosa.

- Como está a tua saúde? -, pergunta um provocador.

Mas não adianta a pressão. Mantenho-me em silencio obsequioso, só quebrado por uma informação que julgo importante antecipar.

- O material já está pronto e entregue a um jornalista para a revisão final. Só que ele não é muito confiável e temo que ocorra algum vazamento seletivo.

Foi como se tivesse ocorrido uma operação da PF, com o japonês à frente, tal o alvoroço provocado pela simples probabilidade de um vazamento de informações.  Houve quem afirmasse que grandes estripulias eróticas  viriam a tona, outros apostaram em malfeitos contra o erário público, ou, ainda, em delações inconvenientes. Enfim, não ouvi nenhuma versão mais edificante, o que não me surpreendeu nestes tempos de incertezas e moral em baixa, em que os valores perderam espaço para o vale-tudo.

De imediato, tratei de escapar do recinto, antes que a situação saísse definitivamente de controle. Acho que passei a correr riscos. Vou reforçar minha segurança pessoal, ou pedir asilo em alguma embaixada de país bolivariano. 

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Dastro Dutra, a rua

O texto a seguir é um trecho do prefácio de Justino Vasconcellos, ex-presidente da OAB RS e cunhado de nosso pai, para o livro “90 anos de histórias”, que a família Dutra editou em 2005 por ocasião dos 90 anos do coronel Dastro  Dutra - na verdade, era tenente-coronel da Brigada, mas nunca recusou a patente superior e por ela ficou conhecido, Ele veio a falecer poucos meses depois de celebrarmos seus 95 anos.  Só a doença e o peso da idade conseguiram vergar o Coronel, que cumpriu plenamente sua missão entre nós, legando principalmente valores e um exemplo de vida. E agora é homenageado com o nome de uma rua no bairro Restinga, o que deve ter deixado ele muito feliz, onde quer que esteja, lembrando uma vida dedicada aos mais necessitados, desde os tempos dos Vicentinos na Igreja de São Sebastião, em Petrópolis.



DE PÈ

1932. Estava prestes a iniciar a batalha de Itararé. Ninguém ignorava que ela seria decisiva. Cresciam o vozerio e a barulheira das armas, em expectativa, no acampamento das tropas avançadas do Rio Grande, contra a Revolução Paulista, que reclamava a imediata constitucionalização do País, indefinidamente protelada por Getúlio.

De repente, o silencio: irrompia no horizonte um avião, arma desconhecida pelos gaúchos. Às ordens de comando, todos atiram-se ao chão. Todos, menos um cadete de 16 anos.

De pé, advertido sobre o perigo, Dastro respondeu:

- Pois que venha esse aviãozinho! Eu é que não vou sujar minha farda por causa dele.

E continuou de pé.

E de pé, se manteve a vida inteira.

Na Academia de Polícia Militar. E no serviço ativo, em Livramento, em Rio Grande, em Santa Maria e Porto Alegre. Contra todas as ameaças e adversidades ele permaneceu, invariavelmente de pé. Tal como aos 16 anos, na iminência da batalha. De pé sempre, para o que desse e viesse.

Naquele tempo, era generalizada – dogmaticamente generalizada – a convicção de que o sacerdote, o juiz e o soldado devem contar apenas com o estritamente indispensável para sobrevivência espartana.

E Dastro enfrentou, de pé, as agruras da severa pobreza que a Brigada Militar oferecia a seus oficiais e soldados. Ele e Thélia, também admirável, com seus nove filhos.

Chamado ao cargo de Diretor do Departamento de Limpeza Pública de Porto Alegre – hoje DMLU -, Dastro logo se impôs ao respeito e admiração gerais. Respeito pela eficiência que imprimiu ao serviço. Admiração pelas iniciativas inesperadas, com que soube conquistar a cooperação entusiástica dos subordinados.

Assim, organizou uma padaria, cujos produtos eram entregues a preço de custo, aos funcionários do DLP. E uma farmácia, cujos medicamentos eram fornecidos a preço de custo. E um refeitório, com as refeições servidas, também elas, a preço de custo, aproveitando-se os legumes e hortaliças cultivadas na área do DLP.

Ele fez do seu Departamento uma grande família, com tais iniciativas, implantadas sem qualquer acréscimo de despesa, pois o pão, o medicamento e as refeições, tudo, tinham o preço rigorosamente apurado, sem deixar lucro e nem prejuízo. Era natural, pois, que os servidores trabalhassem, em sistema de rodízio, sem qualquer remuneração, pelos serviços prestados nessas organizações, em vista dos benefícios obtidos.

Até com máquinas de lavar roupa Dastro conseguiu presentear as mulheres dos seus funcionários, máquinas de madeira, construídas conforme plantas que obteve da Organização dos Estados Americanos.

Para muitos, está claro que a atividade desse brigadiano, Diretor do Departamento de Limpeza Pública, era desconfortável, demasiadamente incômoda: quais seriam as verdadeiras intenções dele? Onde pretendia chegar?

E, inesperadamente, Dastro foi substituído, para espanto e desconsolo de quantos tinham trabalhado sob suas ordens.

Mas é claro que ele continuou de pé. E foi chamado para a direção do Presídio Central, onde se repetiram os êxitos alcançados no DLP, até ser demitido pelas manhas e artimanhas dos muitos ofendidos com o trabalho incansável e os sucessos de Dastro.

Basta lembrar que, ao saberem da substituição de Dastro, os presos, no mesmo instante, se rebelaram exigindo o imediato retorno dele ao cargo! Não, não se sabe de ninguém, nem mesmo por ouvir dizer, não se sabe de um só diretor de presídio no mundo inteiro, cujos detentos tenham se amotinado, para mantê-lo no cargo.

Mais admirável ainda é que o motim só tenha terminado mediante a intervenção de Dastro, junto aos presos, a pedido do próprio Governador do Estado e do Cardeal Vicente Scherer.

Sim, Dastro manteve-se de pé, fossem quais fossem as ameaças e circunstâncias. 90 anos de pé.

Nunca sujou a farda.

Nunca sujou o coração.

Nunca sujou a alma.

Homem de fé, exemplar daquela velha raça, desgraçadamente em extinção, a dos cavaleiros sem medo e sem mancha - “sans peur e sans reproche” -, honra e glória da humanidade.