domingo, 19 de janeiro de 2014

Efeito boiada.

Os gaúchos tem fixação em praia, em estar junto ao mar. Deve ser um atavismo com alguma explicação sociológica que foge a minha compreensão. Uma charge do Iotti na edição conjunta ZH de virada do ano em 2012, diz tudo: Na fila formada por uma boiada, um dos animais pergunta : "Mas, afinal, por que todos temos que ir à praia?" .Bingo,  efeito boiada, é isso que nos move em direção  ao território conhecido no Rio Grande como “as praia”.  Tenho a pretensão conhecer boa parte das praias gaúchas, especialmente do litoral norte, vale dizer de Torres a Quintão e Magistério. Nosso litoral carece de belezas naturais – exceto Torres que seria um enclave de Santa Catarina no Rio Grande – enquanto sobram desatrativos, se é que existe o termo. 

 E independente do tamanho e da origem dos veranistas, os problemas são os mesmos em todos os balneários: crescimento desordenado, infraestrutura precária, serviços públicos que deixam a desejar, atendimento pouco qualificado e por ai vai. Experimente contratar um pedreiro, um pintor, um encanador e você vai ver o que é bom pra tosse. Primeiro ele precisa aparecer no dia marcado, depois utilizar os materiais nas quantidades que ele mesmo indicou, nem o dobro a mais nem a menos e, por fim, entregar o serviço no prazo e na forma como foi acordado. Experimenta, vai.
Mesmo assim temos uma atração obsessiva para fugir até litoral. E aí está o outro problema a ser enfrentado:  as estradas entupidas, que não dão vencimento ao volume crescente de veículos, sem contar os Fuscas, as Brasilias, os Corcel legados pelo século passado e cujos donos e suas famílias se consideram também filhos de Deus e com direito a salgar o corpitcho e tomar Kaiser à beira mar. Os despossuídos, pelo menos, não estão nem aí para as dificuldades.  Como o macaquinho da velha piada, eles querem é gozar.

Quem reclama mesmo é aquele pessoal que torce o nariz para as chinelagens do nosso litoral e vai pra Santa.  Os catarinas ardilosamente erigiram uma barreira na altura de Laguna só para atazanar os chatos dos gaúchos que invadem suas praias  paradisíacas, ao mesmo tempo em que fazem a alegria dos repórteres de rádio com seus boletins repetitivos “...neste momento10 quilômetros de congestionamento no acesso a ponte de Laguna”.  
Os gaúchos que reclamam dos acessos às nossas praias é porque não viveram os veraneios pré Freway , Estrada do Mar, Rota do Sol e outras vias alimentadoras.  Até a década de 70 do século passado funcionava assim:  o carro lotado saia cedo para a RS 030, também conhecida como Estrada Velha que vai de Gravataí e Santo Antonio e Osório,  e dali acessa Tramandaí.  Ou mais ao Sul pela estrada que passa por Viamão e vai a Cidreira, a RS 040  Chegava-se aos outros balneários pela Interpraias e onde ela ficava intransitável, nas praias mais ao norte,  o negócio era seguir pela beira mar, cuidando para não atolar nos inúmeros arroios ou na areia mais fofa.
Em compensação eram tempos menos corridos e o veraneio podia durar um ou até dois meses, o que é  impensável  nestes tempos competitivos, de escapadas de fim de semana.  Desse jeito não há quem aproveite ou espaireça de verdade, porque o sujeito mal chega à casa da praia e já começa a sofrer pensando na volta. É por isso que não entendo esse boom de condomínios fechados disseminados por todo o litoral. Há clientela para tudo isso? E qual a vantagem de sair do aperto da cidade para "desfrutar" do aperto no litoral, com espaços confinados, privacidade às favas e a maioria longe da praia? Como na nossa obsessão pelos praias aqui também não tenho as respostas. 

Agora se me dão licença vou me juntar à boiada. Curasal, lá vou eu.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Quixote implicante

De vez em quando se apossa de mim a figura  do patrulheiro  que investe,  tal qual um Dom Quixote da linguagem,   contra os moinhos da banalização do nosso idioma.. Não se trata de cobrar a escrita correta ou a concordância verbal e nominal de acordo com a Academia Brasileira de Letras,  até porque cometo meus pecadilhos contra a última flor do Lácio.  Nada disso.

É que depois do “veja bem”,  do “e então”, do “olha só”, do “com certeza”,  sem falar no “a nível di” ,  eis que ganha corpo nas conversas uma expressão que está me deixando furibundo: “o que acontece”.  Preste bem a atenção nas conversas daqui pra frente e pode apostar que pelo menos uma dezena de vezes você vai ouvir “o que acontece”, principalmente quando o interlocutor precisa explicar alguma coisa.
 “O que acontece”, como o “veja bem”,   é a muleta dos pobres de linguagem, da mesma forma que os malditos gerúndios tão a gosto dos telemarketings.  O pior é que quem usa se acha phyno!

Depois de vociferar contra os kkkkkkkkk, os hahahaha, os hehehehe, os rsrsrsrsrs nas redes  agora vou implicar contra  os “o que acontece”.  Se cuidem os usuários da expressão, ainda mais quando manejarem pobremente nossa língua perto da minha quixotesca pessoa.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Lata velha

Devia existir uma promoção tipo lata velha para corpos humanos.  “Lata Velha”, como se sabe, é um quadro do programa do Hulk, que transforma calhambeques em carros do ano.  O lata velha dos humanos daria uma geral em corpos cansados, revitalizando articulações, colocando a funcionar órgãos à meia boca, retocando a epiderme e fazendo regredir os males que se instalaram, ou seja, uma rejuvenescida na anatomia maltratada pelo tempo.


Diante dos  6.4 recém completados, com  corpo e mente por demais rodados, sou ficha 001 para o Lata Velha Humano.  A bem da verdade,  o pleito não tem muito a ver com o estado geral da carcaça, mas com a aspiração legitima de todos os humanos à imortalidade.  Há um largo horizonte pela frente e eu quero participar dele. Acho que a raça humana ainda tem salvação e espero estar presente quando se estabelecer o ponto de harmonia, oxalá isso aconteça.  Mas desejo fundamentalmente ver as gerações que  agora engatinham crescerem e buscarem seu espaço num mundo que queremos redesenhado para melhor. Esse já é um bom motivo para aspirar uma jornada mais alongada, com a lateria renovada ou batendo biela.   E por esse nobre motivo, rogarei. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Farofada na fila

* Está aberta a temporada das grandes liquidações, por isso resgatei esse texto de 2009, mas tão atual como nunca.

Brasileiro adora uma fila, até mesmo para praguejar contra ela. Observador da cena que sou, fico pasmo quando se aproxima o Carnaval e constato as imensas filas que se formam, as vésperas do início da venda de ingressos para os desfiles. È uma farofada de cadeiras de praias, cozinhas e camas improvisadas, chimarrão e trago circulando de mão em mão, tudo isso pelo privilégio de serem os primeiros a adquirir os ingressos. Famílias inteiras, inclusive com bebês de colo, participam da maratona tresnoitada, onde não faltam garotas assanhadinhas e rapazes ativos e operantes. Tudo inútil. Sobram ingressos, assim que a fila dos apressadinhos se dissipa.

Esse comportamento que precede os grandes eventos sempre me intrigou. Essa gente não trabalha? Se é ociosa, de onde vem a grana para os desejados ingressos? Será que não existe nada mais interessante e produtivo para passar o tempo do que marcar espaço a espera da bilheteria abrir? E a higiene desse pessoal como é que é feita? Estava ruminando acerca dessas importantes indagações e dos sacrifícios a que se submetem esses vanguardeiros, quando me caiu a ficha: é que as emissoras de TV, cumprindo uma pauta pouco criativa, estão sempre presentes para captar imagens desses grupos. Aí é festa!

Observem as imagens: sempre há alguém dormindo ou se fazendo, mesmo que o sol já esteja a pino, outros repartindo refeições e bebidas das intermináveis garrafas térmicas e uma alegria artificial de quem está recebendo o justo reconhecimento dos 5 segundos de fama a que tem direito. Não foram escolhidos para o BBB, então só resta ser celebridade na fila. Podem conferir, as imagens são sempre as mesmas, como são as mesmas as óbvias perguntas dos repórteres. “Desde quando estão aqui?” Se for antes de show de artista pop não vai faltar cerveja e um rosário de sonoras identificando as cidades de origem

No velório do Michael Jackson consolidaram a ideia da fila na Internet. Já acho de extremo mau gosto esse negócio de transformar cadáver em espetáculo, mas mais de 1,6 milhões de fãs haviam se habilitado, sendo que apenas 8,5 mil receberam o privilégio de assistir de perto ao “evento”. Ou seja, nem a tecnologia acaba com as filas.

As inovações não param por aí. Um grande branco federal requintou o processo e criou a fila da fila. Funciona assim: o sujeito se submete a uma fila para receber uma senha que dá direito a fila do atendimento nos caixas. Detalhe: a primeira fila fica dois andares acima da fila final.

Foge a minha compreensão também aqueles atropelos nas lojas dos EUA – ou será no Japão? – no início das liquidações. É um comportamento que depõe contra o gênero humano. O pior é que a moda está pegando aqui no Brasil e dia de abertura de liquidação nas lojas mais populares é precedida de farofadas nas filas, com as mesmas cadeiras de praia, as mesmas garrafas térmicas, eventualmente uma barraca, gente insone, mas cheia de energia para comprar o que nem sempre precisa, mas garantir uma eventual participação televisiva. Empurra daqui, empurra dali e daqui a pouco se sobressai o fortão, carregando nos ombros uma tv de plasma, ou o casal que tenta ajeitar o refrigerador e mais os filhos numa velha Brasília. E é sempre a mesma coisa.

Estou sendo demasiadamente cruel com os hábitos populares? Pode ser, mas se um dia me virem participando de uma farofada dessas, chamem a SAMU e me internem.

*Publicado originalmente em Coletiva.net, em 8/7/2009