quinta-feira, 26 de abril de 2012

O homem que amava panturrilhas

Na mesa do restaurante, repleta de cafajestes, ele elevou a voz acima das frivolidades do momento e fez a revelação bombástica, apontando para a bela apresentadora do programa esportivo da TV:

- Ela é bonita, mas a panturrilha...

Aquela sentença, pronunciada com voz grave, quase lamentosa, teve o efeito de paralisar todas as outras atividades à mesa. Os entrecots, as picanhas na chapa, as batatinhas, as massas e demais iguarias ficaram livres momentaneamente do assédio voraz dos garfos e das facas. Um valor mais alto se alevantava.  Aquela frase, aquela entonação, aquele parceiro, que revelações ainda estavam por vir?! Todos os olhares se dirigiram para o autor da sentença, sentado à cabeceira da mesa, a mirar melancolicamente para a musa televisiva de panturrilhas imperfeitas.

- O que tem as panturrilhas dela?, perguntaram quase em coro os outros bandalhos, companheiros de confraria.

Ligeiramente constrangido, mas sem condições de rebobinar o tempo e deletar a revelação surpreendente, ele teve que admitir que seu fetiche em relação as mulheres eram as panturrilhas das moças.  Um súbito entusiasmo tomou conta do parceiro, que passou a discorrer com naturalidade e riqueza de detalhes sobre aquela parte da anatomia humana, a popular batata da perna, aqui considerado o naipe feminino. Amava panturrilhas bem torneadas, sem muita musculatura, mas firmes o suficiente para resistir aos afagos mais enérgicos e merecidos. Não sabia quando o fetiche havia começado, mas contou que passou alguns vexames diante de parceiras cujas panturrilhas não estavam de acordo com seu padrão estético.

“ Uma ou outra vez fiquei devendo”, informou à mesa atenta,  preferindo um eufemismo para a tradicional brochada. E nesse ponto esclareceu suas restrições à bela da telinha:

- Encontrei com ela no shopping e descobri que a panturrilha dela, da dobra do joelho até o tornozelo, é uma coisa só, massuda, sem curvas ou saliências, enfim, sem qualquer atrativo ou erotismo...

Cruelmente os confrades  se divertiam com o relato, mas eu que sou um poço de sensibilidade, observei que o parceiro agora  estava com os olhos marejados, como criança que descobre que o desejado brinquedo apresentava um defeito.  Ele recebeu bem o meu olhar de solidariedade e, mais animadinho, disparou outra frase bombástica:

- Agora só me resta a massagem tântrica...

Todos na mesa estacaram novamente. Aquele almoço prometia novas e trepidantes surpresas.






sexta-feira, 20 de abril de 2012

O sequestro do bonde Petrópolis

*Publicado originalmente em 16/10/2009

                O bonde Petrópolis, em foto de 1957, anos antes do sequestro.

A mesma turma do bairro Petrópolis que trocava por palavrões os letreiros do cinema Ritz ( O Circo de Petrópolis: Sessão da tarde no Ritz, publicado em 15/10/09) decidiu, numa noite de tédio, buscar novas emoções. Na prática, planejaram seqüestrar o bonde Petrópolis, cujo fim da linha ficava na esquina da Protásio Alves com a Carazinho.

A linha do bonde Petrópolis era dupla até a João Abott e ali derivava para uma única linha até o destino final, em frente ao Bar Forianópolis, a meia quadra do cinema Ritz e da igreja de São Sebastião. No fim da viagem, antes de tomar um ou um cafezinho, o motorneiro e o cobrador providenciavam a inversão da haste que ligava o veículo à rede elétrica para permitir o retorno ao centro da cidade. Os zelosos funcionários tratavam de levar junto a alavanca que funcionava para arrancar e dar velocidade aquele monstro. A tal alavanca, embutida num equipamento da cabine, era um misto de chave de ignição, guidão, acelerador e freio.

Conhecendo bem esses procedimentos, a turma de Petrópolis ficou noites e noites na campana, esperando um vacilo dos condutores do bonde. Foi então que num sábado, tarde da noite, o motorneiro esqueceu a alavanca, já engatada no dispositivo da cabine, quando foi bater ponto no Florianópolis. De imediato, três rapazes assumiram o controle do elétrico, acionaram a alavanca e saíram em disparada rumo ao centro.

Os relatos dão conta de que cinco passageiros já estavam embarcados. Cinco apavorados passageiros a mercê daqueles tresloucados e sem poder desembarcar. Mas o seqüestrador que fazia às vezes de cobrador tratou de acalmá-los, anunciando: “Hoje é de graça, minha gente”. Sem saber, estava inventando o passe livre.

Pelo menos duas paradas separavam o fim da linha do entroncamento da João Abott, mas o bonde passou por elas em alta velocidade. As raras pessoas que aguardavam o transporte se surpreenderam com a passagem daquele bonde conduzido por homens sem o uniforme caqui da Carris. E ainda por cima passavam abanando e as gargalhadas. Quando se deram conta do rapto, o motorneiro e o cobrador saíram correndo atrás, acenando freneticamente e gritando para que parassem e devolvessem o veículo. Uma cena de filme! Mas o bonde já tinha ganhado uma boa dianteira e ali pela esquina da rua Ijuí - a uma quadra das longas desde o fim da linha -  a dupla cansou e ,cada vez mais aflita, decidiu seguir a passo para tentar resgatar o carro perdido.

Enquanto isso, na altura da bifurcação da João Abott, os seqüestradores não souberam realizar a manobra que desviava o bonde para a segunda linha, pararam o veículo e sumiram na escuridão, cada um para um lado. Os passageiros que estavam embarcados, ainda em pânico, aproveitaram para também debandar. Duas ou três pessoas que aguardavam o transporte na parada da João Abott ficaram sem saber se subiam naquele bonde-fantasma, estacionado fora de lugar, com as luzes acesas mas sem motorneiro nem cobrador. A dupla chegou em seguida, já sem fôlego e, após verificar se havia estragos, tratou de rumar para o centro, vexada com o ocorrido.

Claro que no dia seguinte o seqüestro do bonde Petrópolis foi o assunto em todas as rodas. A história era contada e recontada e, com o passar dos anos, ganhou a condição de lenda urbana. Há versões, evidentemente equivocadas, de que o Tadeu e eu, só porque éramos conhecidos como Irmãos Diabo, teríamos liderado a gang que realizou o seqüestro. Repito, não é verdade. Nego, peremptoriamente. Nós sabemos quem foi e o que fizeram naquele verão do passado.

sábado, 14 de abril de 2012

Cláudio Cabral, grande figura


Cláudio Cabral não era o principal comentarista da praça.  Na real, tinha tudo para não vingar na função:  era monotemático nas suas análises, porque defendia sempre os mesmos pontos de vista;  a voz anasalada e sem a imposição dos concorrentes clássicos era outro atrapalho na sua carreira; e, pecado capital no grenalizado e esquizofrênico futebol gaúcho:  não escondia sua preferência clubística e nem poderia, eis que participou de uma corrente que fez história no Internacional, conhecida como Os Mandarins – a  vinculação histórica,aliás, nunca impediu que fosse um algoz do seu clube de coração, quando apontava os erros das direções ou os equívocos dos técnicos.  
Mesmo assim, Cabral é saudado como “O Mestre”, tanto pelos mais antigos como pelas novas gerações e  os aspirantes da chamada crônica esportiva.  É que essa figuraça conhecia futebol como poucos, o que lhe garantia respeitabilidade e seguidores fiéis, além de esbanjar carisma, o que o tornava singular entre os que tinham o privilégio de privar com ele.

Monarquista convicto – “mas da monarquia parlamentarista”, fazia questão de esclarecer -, viciado em palavras cruzadas, santamente devasso, exibia gostos sofisticados que os modestos salários nem sempre sustentavam e, acima de tudo, era um parceirão no trabalho e fora dele.  
Cabral não talvez não tenha avaliado, mas bebi na sua sabedoria muitas vezes, embora também tenha  sido vitima constante de suas frases cruéis, definitivas, mas sempre verdadeiras: “Flávio Dutra, tu és um vidrinho de vaselina, sem o vidrinho...”. Eu magoava, mas era obrigado a reconhecer que ele tinha razão.  Podia ser pior, porque para determinada gestão colorada, reservou uma variação menos nobre sobre  o recipiente e seu conteúdo: “Essa direção é um balde de bosta...sem o balde”.

O frasista talentoso é provavelmente o traço mais marcante do nosso Cabral para aqueles que conviveram diretamente com ele no dia-a-dia.  Seus companheiros na Band e de outras parcerias lembram algumas das suas sentenças mordazes. O perna de pau era seu alvo preferido: “Jogador ruim não pode ficar nem no banco porque senão acaba jogando”; “Jogador ruim nunca se machuca”; “Se a bola tivesse vontade própria ia a delegacia e denunciava o Edinho por maus tratos”;  “Olha aqui, pega uma múmia, tira as faixas e ela vai jogar mais que o Celso”; “O Rooney é o Badico que fala inglês. Desculpa, Badico pela comparação”; “Gabiru foi a maior ironia do destino”; “Não leva nota, não entrou em campo”.
Não poupava os treinadores: “Treinador bem pago é treinador ruim, que recebe de dois ou três times ao mesmo tempo”;  “O Parreira é um camarada que daqui a pouco fez um cursinho de inglês e virou referência de treinador”;  “Fulano é Vigário José Inácio”, associando a rua central da cidade com a vigarice, que devia ser entendida como enganação.  Mas tinha outra forma de discordar das opiniões ou informações alheias e, neste caso, as maiores vítimas eram os repórteres: “Baldasso, tu não vais me passar esse cachorro”.

Era  exigente, irreverente, radical, exagerado:  “Sou do tempo em que o Inter ganhava de 3 x 0 no Beira-Rio e era vaiado”. “Sem a bola eu e o Pelé somos a mesma coisa”; ” Pior que vencer o Gauchão é perdê-lo”; “Fulano consome a energia de uma usina para acender uma lâmpada”. Falava e assinava embaixo.
Por tudo isso, acho que a grande perda de Cláudio Cabral, que nos deixou neste sábado chuvoso, não foi para o futebol ou para a radiofonia, mas para a convivência humana. Pena que eu tenha convivido tão pouco com ele.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A pauta da sexta-feira Santa.

                                         Oliboni, Cristo por um dia

Repórter de plantão na sexta-feira Santa enfrenta uma pauta obrigatória: a cobertura da encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, no Partenon, também conhecida como subida ou procissão do Morro da Cruz. O evento ocorre desde 1960, criado pelo padre Angelo Costa, já falecido, e cresce a cada ano, reunindo preferencialmente atores da comunidade. Lá no final da década de 80 do século passado este que vos fala era repórter de geral da Zero Hora, estava de plantão da sexta-feira Santa e, claro, foi escalado para acompanhar a encenação.
Lembro bem que era um dia quente no final de março e para escapar das obviedades das coberturas tradicionais, decidi escolher dois ou três personagens interpretados por atores locais para, através deles, montar a minha matéria.  Um dos personagens era balconista de uma ferragem e intérprete do soldado romano que passava toda a encenação surrando, com uma espécie de relho, um dos ladrões, que na vida real era motorista de táxi.  É importante esclarecer que a encenação reproduz a Via Sacra  e suas 14 estações ou etapas do suplício de Cristo naquela sexta-feira, há mais de dois  mil anos. Só que alguns atores imprimem demasiado realismo a suas interpretações e era  caso do soldado romano que, volta e meia, pesava a mão contra o pobre e talvez bom ladrão. O infeliz olhava enfurecido para seu algoz, mas nada podia fazer durante a celebração religiosa, mesmo que o sacana legionário revelasse perversa satisfação em maltratar o companheiro de elenco.  Sei lá se não deu o troco após o evento. O soldadinho, um sujeito atarracado e malvado, bem que merecia.

O mais inusitado ainda estava para acontecer naquela encenação do século passado.  O gran finale seria a ascensão de Cristo, a partir da capelinha existente no platô do Morro da Cruz e onde ocorria o final da procissão.  O espetáculo no fim da tarde previa jogo de luzes, uma trilha épica e aqueles fumacinhas de shows,  que acompanhariam a subida do Filho de Deus feito Homem aos céus. Um engenhoso sistema mecânico elevava o ator, com suas vestes brancas, enquanto ele recitava lições de religiosidade. O ator já era o ex-vereador Aldacir Oliboni, considerado a réplica moderna do Cristo, de acordo como mostram as ilustrações que conhecemos.
Pois bem, lá estava o Cristo- Oliboni exortando os fiéis quando, à esquerda do platô, começou uma movimentação frenética. “É ele, é ele, sim!”, repercutia a massa.  Voces estão autorizados a pensar que era o próprio Cristo redivivo comparecendo ao seu velório, mas na verdade era quase isso, guardadas as proporções e o período histórico.  Quem surgia triunfalmente era Sérgio Zambiasi no auge da sua popularidade. O Zamba foi cercado e festejado pela multidão, enquanto Cristo subia ao encontro do Pai,  lentamente e quase de forma incógnita.

Oliboni ainda tentou atrair a atenção dos infiéis, gritando palavras de ordem pelo sistema de som:  “Cristo está aqui!  Cristo está aqui! Agora é o momento  glorioso da subida aos céus. Venham, venham, é aqui que está o Filho do Senhor! Demos glórias ao Senhor!”, apelava o bom Oliboni. Inúteis apelos.  A massa queria mesmo era confraternizar – e fazer pedidos – a quem mais tinha a oferecer naquele momento.  Entre os consolos espirituais que Oliboni inspirava e os materiais que Zambiasi poderia proporcionar  a escolha do povo pecou pelo pragmatismo, mesmo na Semana Santa.
Confesso que fiquei penalizado com a situação do Oliboni, supliciado durante toda a subida do morro e justo no momento da sua consagração como Cristo e ator o público o abandonava daquela forma, trocando-o por uma situação tão mundana.  De novo, mais de dois mil anos depois, a história se repetia e  o povo renegava Jesus Cristo.

Insensível público, mas depois fiquei pensando que fatos como o que presenciei talvez expliquem porque Sérgio Zambiasi chegou a senador e Oliboni, mesmo sendo Cristo por um dia, só agora conseguiu assumir como deputado estadual, ainda assim vindo da suplência. Mas aí já é outra história, nada a ver com a Semana Santa.
Boa Páscoa a todos. Que o coelhinho seja mais generoso que a massa que renegou Cristo-Oliboni.