sábado, 22 de fevereiro de 2020

Mistérios do Carnaval



Reeditada do original publicado em fevereiro/2013.

Já fui um folião militante, do  tempo em que existiam carnavais nos bairros e imperavam os bailes de salão. Lembro como se fosse hoje os blocos e tribos descendo a rua Ijuí, no bairro Petrópolis,  onde o chefe dos correios local e sua mulher promoviam, lá no início dos anos 60 do século passado, um animado desfile. 

Depois, passei a  frequentar clubes de primeira linha e outros nem tanto, sempre à procura de uma colombina para uma noite. Inesquecíveis carnavais no Petrópole Tênis Clube, na Sogipa, no Gondoleiros, no Clube Farrapos, no Caminho do Meio, no União e Progresso,  nas sociedades de praia e uma memorável noitada no Rio Branco, de Cachoeira do Sul – espero que as testemunhas silenciem à respeito.  Mais tarde, fuzarquei nos pré-carnavalescos e, à época, o Vermelho e Branco do Internacional, no Gigantinho, era imbatível.

Foi lá que deparei a menos de dois metros com uma Xuxa em início de carreira, seminua, fantasiada de libélula. Era a grande atração daquele ano, contratada  pelo Salim (de saudosa memória) e o Fernando Vieira, os promotores do Vermelho e Branco. Era bom! Ou nem tanto, pois foi na volta pra casa de um desses bailarecos que capotei meu Fusca Fafa, na curva da Estrada da Serraria que meus detratores apelidaram de "curva Flávio Dutra".  Meu Anjo da Guarda estava de plantão e ele e as mamonas, sobre as quais virou o carro, garantiram que nada me acontecesse, além do susto.

Depois, passei a ser um carnavalesco mais comedido e menos participativo,  Não escapei de acompanhar os filhos nos bailes infantis e, mais tarde, por dever de ofício, ia ao Porto  Seco ou assistia pela TV aos desfiles do Rio, com uma discreta preferência pela União da Ilha e pela Vila Isabel.  Aqui sempre torci pela Praiana.

Apesar da experiência  acumulada ainda hoje fico intrigado com algumas coisas do Carnaval, verdadeiros mistérios que perduram. É o caso da cuíca. Pra que serve a cuíca? Não faz percussão, não dita ritmo, apenas chora sem ser notada no meio da bateria. E por que nas baterias às mulheres só são reservados  os chocalhos, aquele instrumentos cheios de rodelinhas de metal? Por que as baterias, diferentemente das bandas que animam os bailes, não usam metais que dão um colorido todo especial às músicas?

Também me intriga o fato de os carros alegóricos quebrarem sempre na entrada da avenida, atrapalhando a harmonia e a evolução da escola. As escolas fazem um enorme investimento e ficam reféns de uns cacos- velhos. Pode isso, Arnaldo? Não consigo entender, ainda, porque determinadas alas insistem em usar fantasias pesadonas, com adereços difíceis de carregar e equilibrar, quando o ideal seria a leveza das vestes para permitir  um desfile sem incômodos. E quem é que sai com aquelas mulatas maravilhosas?  E será que o Rei Momo, findo o Carnaval, devolve ao prefeito as chaves da cidade? Dúvidas, mistérios!

Até hoje tento entender outro mistério:  porque as moças da Secretaria da Saúde faziam questão de me oferecer camisinhas quando me encontravam no Sambódromo. Não que eu fosse contra a campanha educativa, mas é que meu prazo de validade esta vencido, tanto quanto um preservativo não usado há muito tempo.  O detalhe é que sempre guardava as camisinhas. Vai que...


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O velório


*Inspirada em fatos reais

Nunca houve um velório como o do Zimba, vítima  de insidiosa doença, contra a qual lutou bravamente. Figura popularíssima no meio em que transitava, colecionou  inúmeros amigos e pelo menos duas famílias. Uma que seria a titular,  ou melhor, a primeira,  com uma fileira de filhos e netos e a segunda no paralelo, com “aquela outra” como diziam os familiares, em tom difamatório, referindo-se à senhora loira que morava numa cidade do litoral. 

Esse era mais um viés da diversidade de interesses e atividades do nosso amigo, um qualificado profissional  das artes gráficas e talentoso músico, tanto  nos  vocais como no manejo de vários instrumentos, com ênfase nos sambas de raiz. Tocava pandeiro como ninguém, enquanto balançava o corpo, um tanto roliço na fase da maturidade, o que não impedia graciosos passos sincopados com a música.

O velório foi no ritmo de vida  do  Zimba, em alto astral. Capela mortuária lotada, o caixão dominando o centro, coberto em parte com a bandeira do Grêmio e ladeado  por um conjunto de instrumentistas à espera do momento para fazer a derradeira homenagem musical ao parceiro de tantas rodas de samba, em noitadas memoráveis.
 
Junto ao caixão reinava dignamente a viúva oficial, dona Divina,  recebendo os cumprimentos dos conhecidos, que eram muitos e não paravam de chegar.  O gesto de solidariedade por pouco não redundava em riso ao desviar o olhar para o  Zimba, ali ao lado,  encaixotado e enfatiotado, mas com aquele jeitão debochado, como se pudesse dizer: “Tô numa  boa  aqui, minha gente.” O pessoal se continha, porém.

Em seguida  começou o  show musical, que de fúnebre não tinha nada. O cavaco chorou e o violão  atacou  um repertório de levantar defunto, mas não foi o caso, embora houvesse quem jurou ter visto o Zimba  dar uma leve agitada na sua morada transitória, impressão forçada pelas doses de bebidas ingeridas por quem observou a improvável movimentação no ataúde.

Horas antes, em caminhada à beira do Guaíba,  dois amigos, ex-colegas de trabalho do falecido, comentaram o passamento do Zimba, Um deles explicou porque não iria ao velório e tão logo terminou a explicação foi atingido por uma pomba, vinda dos céus. Sim, uma pomba desgarrada e desorientada, acertou o caminhante, numa ação jamais vista .naquelas paragens.

- Só pode ser coisa do Zimba. Está me mandando recado -, assombrou-se o atingido pelo projétil columbófilo.

Corta novamente para a capela mortuária., onde o amigo Igor, cantor  da noite, não resiste a emoção  e sai antes da encomendação, aos prantos, enquanto a neta do encomendado, numa  cena tocante, dava voltas no caixão declamando “te amo, meu vozinho.”   Zimba era um homem que prezava  a família, tanto assim que tinha duas.

Histórias escabrosas envolvendo o personagem, algumas francamente exageradas, mas todas com epílogos engraçados, foram recordadas, provocando risadas  dos circunstantes.  Entre elas, a da volta dele ao lar, depois de três dias de folia carnavalesca. Insone, precisou fugar num momento de distração de  dona Divina, que ameaçava cortar  seu membro mais precioso com uma afiada faca churrasqueira, caso caísse no sono. Outra feita, escapuliu às pressas do consultório médico, onde se submeteria a um toque retal, quando percebeu que o urologista possuía mãos e dedos graúdos como um jogador de basquete. “Expliquei à recepcionista que estava mesmo era com problema no joelho e me mandei”, teria revelado na ocasião.

Perto do meio dia, a filha mais velha do Zimba começou a avisar: “Deu gente, acabou, acabou. Podem ir embora, terminou, terminou. Obrigado por terem vindo, mas tá na hora. Vão embora”.
O pessoal não entendeu a pressa da moça, mas o imperativo das ordens dela começou a esvaziar a capela.  O procedimento tinha razão de ser: Zimba e seu caixão precisariam fazer  um curto passeio antes da viagem eterna.

Ocorre que um civilizado  acordo  garantiu um segundo velório, este no litoral e exclusivo para a loira que dividia o trefego e tão amado Zimba. Não se tem notícia  de quem costurou esse nobre e generoso acordo, mas, sem dúvida,  foi um cidadão de bem e certamente uma pessoa precavida, que ao evitar a presença “daquela outra” no velório familiar, evitou igualmente constrangimentos de parte a parte. E lá se foi o Zimba com seu esquife  no carro funerário, em sua última passagem de ida e  volta pela Freway.

Entretanto, contrastando com  o concorrido velório de Porto Alegre, a despedida no litoral foi melancólica, para uma única pessoa, mas justa para quem  tinha aguentado estoicamente nos  últimos anos, as inconstâncias do parceiro compartilhado.  Zimba não era fácil, mesmo assim mereceu lágrimas sinceras da companheira de tantos prazeres e uma oração que visava, acima de tudo, redimi-lo das intensidades cometidas, o que talvez pudesse ajudá-lo no julgamento junto ao Criador, pensava a crédula senhora.

Findo as atos litorâneos, Zimba voltou e pode, afinal, descansar em paz, só a espera da cremação, mas ainda assim precisou se dividir: as cinzas foram repartidas, de forma igualitária  entre as partes de Porto Alegre e do Litoral.

(Só espero que, por causa deste texto, o Zimba não me atire um urubu na cabeça nas minhas caminhadas por Ipanema. Zimba, aceite como um tributo a uma figura ímpar!)

* Publicado nesta data em coletiva,net.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Urgência na nação amiga


* Publicado nesta data em coletiva.net
Digamos que numa nação amiga um poderoso vírus ameace boa parte da população  e o governo decida construir, de forma urgente e em tempo  recorde,  um hospital para atender os casos que começam a ser registrados em vários  pontos do país. O exemplo veio da China,  que ergueu em apenas 10 dias um hospital com mil leitos para fazer frente aos efeitos do coronavirus.

Na nação amiga o primeiro problema  é escolher o local onde será construído o  hospital. Os estados da federação entram na disputa pela a obra, porque ela representaria um pesado investimento federal, movimentando toda a economia regional e gerando preciosos empregos. Enquanto isso, as cidades com potencial para sediar o hospital enfrentam forte resistência da população, por conta do temor que o contágio se alastrasse. O debate consume mais de 30  dias, com ferozes enfrentamentos nas redes sociais entre os contra e os a favor da implantação do complexo hopitalar.

Outros 30 dias  foram consumidos para decidir se o projeto executivo da obra seria licitado ou não, tendo em vista tratar-se de uma iniciativa emergencial. O Ministério Público exige licitação depois de mais de três semanas de análise do caso.  Feito o projeto, devidamente licitado, o Tribunal de Contas aponta superfaturamento nos custos e determina nova licitação.  A segunda empresa colocada no  processo apela para uma ação judicial, alegando que deveria ser a vencedora. O caso vai para o Supremo da nação amiga que, naturalmente, fica dividido e precisa de três sessões para chegar a uma decisão. Apenas o voto  de uma ministra  demandou uma sessão inteira, ninguém entendeu nada dos argumentos dela, mas contribuiu para os mais 45 dias de atraso.

O presidente da República chega a cogitar a criação de uma estatal para tratar do empreendimento, mas acaba voltando atrás. Só que a indecisão deixa tudo em suspenso por uma semana.
Finalmente, o local é escolhido, o projeto  liberado e começa nova etapa e nova discussão: licitar ou não a execução da obra. Mais  60 dias de idas e vindas burocráticas, pareceres  do MP, intervenções na Câmara e no Senado, mais denúncias de sobrepreço, apontamentos do Tribunal de Contas, liminares e decisões judiciais, até que a obra possa ter início.

Começa, enfim, a construção que, porém, é suspensa logo na primeira semana. Motivo: sondagem geológica não apontou a existência de uma enorme pedra que aparece agora no terreno.  O projeto precisa ser refeito. Mais 60 dias de atraso.  A obra é retomada, mas não avança porque  a  fiscalização do meio ambiente descobre um pequeno butiazeiro na vizinhança do terreno e embarga a construção. Nova alteração no projeto e mais 60 dias de retardo.

Tudo resolvido, a construção para novamente devido a paralisação dos operários por falta de pagamento. A empreiteira alega atraso nos repasses do governo.  O governo argumenta  que precisa uma suplementação orçamentária e isso exige aprovação do Congresso.  Foram mais 90 dias de atraso, incluindo um recesso, e de acalorados debates e custosas negociações, nada republicanas, com os aliados. O processo legislativo só não se arrasta mais porque o Executivo lança mão de uma medida provisória para agilizar a tramitação, com protestos veementes da oposição.

Quase dois anos depois, quando a obra com seus 50 leitos finalmente fica pronta, a população infectada cresceu em progressão geométrica. Nem assim o hospital começa a funcionar: os bombeiros não permitem a abertura, cobrando o inexistente plano de prevenção contra incêndios.    Isso não impede que o governo da nação amiga, diante do alastramento do virus, anuncie que vai construir um segundo  hospital...

Determinadas coisas só acontecem na nação amiga.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

As pessoas, o mesmo e aquele outro


* Publicado nesta data em coletiva.net

“As pessoas” é uma instituição cheia de atividades. Observe a naturalidade com que “as pessoas” se referem às “pessoas”.  Frases do tipo: “As pessoas estão usando muito...”, ditando comportamentos;  “As pessoas estão postando a mil nas redes sociais”, em modo digital;   “As pessoas não gostam que...”, em viés opiniático;  “Conheço pessoas que...”, afetando intimidade. E por aí vai. Quase um sujeito indeterminado esse “as pessoas”.

Na real, nada mais impessoal que “as pessoas”. “As pessoas” é um conjunto incorpóreo, sem rosto, mas tem a pretensão de ser uma parte de outro coletivo muito citado, a sociedade, e de representar a opinião pública como um todo, quando se manifesta nas conversas de terceiros. As vezes assume sua porção laranja, ao apelar  para as opiniões “das pessoas” para não  se comprometer. Sabe, aquela frase “as pessoas estão  dizendo que...”.  

A redução de “as pessoas” é o “gente” ou o “a gente”, sempre citado por repórteres e entrevistados sem muitos  recursos. Olha, se eu fosse ‘as pessoas’ me insurgiria contra este uso indevido e  abusivo da expressão que me acolhe.

O mesmo não seria necessário para “o mesmo”, uma entidade ligada umbilicalmente aos elevadores. Ninguém ainda viu “o mesmo” que é citado em todas as plaquetas de advertência junto as portas dos elevadores, assim: “Antes de entrar no elevador, certifique-se que o mesmo encontra-se parado neste andar”.  Até uma comunidade foi criada  por internautas “Eu tenho medo do mesmo”, como se fosse um ser  vivo e atuante, embora nunca visto, o que não impede “as pessoas” de adentrarem ao elevador sem a garantia de  que “o mesmo” encontra-se,  parado ou se movimentando, no andar. Uns puristas da língua insistem em que “o mesmo”  é uma expressão usada erroneamente nas plaquetas. Bah, se “o mesmo” sabe disso vai dar confusão e é até  capaz de ser visto  e protestando.

E tem “o outro”, muito usado em argumentações  do tipo “como diz o outro” ou “como diz aquele outro”, seguida de uma obviedade qualquer.  Embora pareça  muito próximo, porque é citado com frequência, as pessoas, mesmo as mais esclarecidas, não sabem mesmo de quem se trata, onde vive e do que se alimenta. Ou seja, o outro é  outra história.

Por  fim, duas sugestões de título para este texto: “O que faz a ociosidade” ou “Um texto cheio de aspas”.