segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O velório


*Inspirada em fatos reais

Nunca houve um velório como o do Zimba, vítima  de insidiosa doença, contra a qual lutou bravamente. Figura popularíssima no meio em que transitava, colecionou  inúmeros amigos e pelo menos duas famílias. Uma que seria a titular,  ou melhor, a primeira,  com uma fileira de filhos e netos e a segunda no paralelo, com “aquela outra” como diziam os familiares, em tom difamatório, referindo-se à senhora loira que morava numa cidade do litoral. 

Esse era mais um viés da diversidade de interesses e atividades do nosso amigo, um qualificado profissional  das artes gráficas e talentoso músico, tanto  nos  vocais como no manejo de vários instrumentos, com ênfase nos sambas de raiz. Tocava pandeiro como ninguém, enquanto balançava o corpo, um tanto roliço na fase da maturidade, o que não impedia graciosos passos sincopados com a música.

O velório foi no ritmo de vida  do  Zimba, em alto astral. Capela mortuária lotada, o caixão dominando o centro, coberto em parte com a bandeira do Grêmio e ladeado  por um conjunto de instrumentistas à espera do momento para fazer a derradeira homenagem musical ao parceiro de tantas rodas de samba, em noitadas memoráveis.
 
Junto ao caixão reinava dignamente a viúva oficial, dona Divina,  recebendo os cumprimentos dos conhecidos, que eram muitos e não paravam de chegar.  O gesto de solidariedade por pouco não redundava em riso ao desviar o olhar para o  Zimba, ali ao lado,  encaixotado e enfatiotado, mas com aquele jeitão debochado, como se pudesse dizer: “Tô numa  boa  aqui, minha gente.” O pessoal se continha, porém.

Em seguida  começou o  show musical, que de fúnebre não tinha nada. O cavaco chorou e o violão  atacou  um repertório de levantar defunto, mas não foi o caso, embora houvesse quem jurou ter visto o Zimba  dar uma leve agitada na sua morada transitória, impressão forçada pelas doses de bebidas ingeridas por quem observou a improvável movimentação no ataúde.

Horas antes, em caminhada à beira do Guaíba,  dois amigos, ex-colegas de trabalho do falecido, comentaram o passamento do Zimba, Um deles explicou porque não iria ao velório e tão logo terminou a explicação foi atingido por uma pomba, vinda dos céus. Sim, uma pomba desgarrada e desorientada, acertou o caminhante, numa ação jamais vista .naquelas paragens.

- Só pode ser coisa do Zimba. Está me mandando recado -, assombrou-se o atingido pelo projétil columbófilo.

Corta novamente para a capela mortuária., onde o amigo Igor, cantor  da noite, não resiste a emoção  e sai antes da encomendação, aos prantos, enquanto a neta do encomendado, numa  cena tocante, dava voltas no caixão declamando “te amo, meu vozinho.”   Zimba era um homem que prezava  a família, tanto assim que tinha duas.

Histórias escabrosas envolvendo o personagem, algumas francamente exageradas, mas todas com epílogos engraçados, foram recordadas, provocando risadas  dos circunstantes.  Entre elas, a da volta dele ao lar, depois de três dias de folia carnavalesca. Insone, precisou fugar num momento de distração de  dona Divina, que ameaçava cortar  seu membro mais precioso com uma afiada faca churrasqueira, caso caísse no sono. Outra feita, escapuliu às pressas do consultório médico, onde se submeteria a um toque retal, quando percebeu que o urologista possuía mãos e dedos graúdos como um jogador de basquete. “Expliquei à recepcionista que estava mesmo era com problema no joelho e me mandei”, teria revelado na ocasião.

Perto do meio dia, a filha mais velha do Zimba começou a avisar: “Deu gente, acabou, acabou. Podem ir embora, terminou, terminou. Obrigado por terem vindo, mas tá na hora. Vão embora”.
O pessoal não entendeu a pressa da moça, mas o imperativo das ordens dela começou a esvaziar a capela.  O procedimento tinha razão de ser: Zimba e seu caixão precisariam fazer  um curto passeio antes da viagem eterna.

Ocorre que um civilizado  acordo  garantiu um segundo velório, este no litoral e exclusivo para a loira que dividia o trefego e tão amado Zimba. Não se tem notícia  de quem costurou esse nobre e generoso acordo, mas, sem dúvida,  foi um cidadão de bem e certamente uma pessoa precavida, que ao evitar a presença “daquela outra” no velório familiar, evitou igualmente constrangimentos de parte a parte. E lá se foi o Zimba com seu esquife  no carro funerário, em sua última passagem de ida e  volta pela Freway.

Entretanto, contrastando com  o concorrido velório de Porto Alegre, a despedida no litoral foi melancólica, para uma única pessoa, mas justa para quem  tinha aguentado estoicamente nos  últimos anos, as inconstâncias do parceiro compartilhado.  Zimba não era fácil, mesmo assim mereceu lágrimas sinceras da companheira de tantos prazeres e uma oração que visava, acima de tudo, redimi-lo das intensidades cometidas, o que talvez pudesse ajudá-lo no julgamento junto ao Criador, pensava a crédula senhora.

Findo as atos litorâneos, Zimba voltou e pode, afinal, descansar em paz, só a espera da cremação, mas ainda assim precisou se dividir: as cinzas foram repartidas, de forma igualitária  entre as partes de Porto Alegre e do Litoral.

(Só espero que, por causa deste texto, o Zimba não me atire um urubu na cabeça nas minhas caminhadas por Ipanema. Zimba, aceite como um tributo a uma figura ímpar!)

* Publicado nesta data em coletiva,net.

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