*Inspirada em fatos reais
Nunca houve um velório
como o do Zimba, vítima de insidiosa
doença, contra a qual lutou bravamente. Figura popularíssima no meio em que
transitava, colecionou inúmeros amigos e
pelo menos duas famílias. Uma que seria a titular, ou melhor, a primeira, com uma fileira de filhos e netos e a segunda
no paralelo, com “aquela outra” como diziam os familiares, em tom difamatório,
referindo-se à senhora loira que morava numa cidade do litoral.
Esse era mais um viés da
diversidade de interesses e atividades do nosso amigo, um qualificado
profissional das artes gráficas e
talentoso músico, tanto nos vocais como no manejo de vários instrumentos,
com ênfase nos sambas de raiz. Tocava pandeiro como ninguém, enquanto balançava
o corpo, um tanto roliço na fase da maturidade, o que não impedia graciosos
passos sincopados com a música.
O velório foi no ritmo de
vida do
Zimba, em alto astral. Capela mortuária lotada, o caixão dominando o
centro, coberto em parte com a bandeira do Grêmio e ladeado por um conjunto de instrumentistas à espera do
momento para fazer a derradeira homenagem musical ao parceiro de tantas rodas
de samba, em noitadas memoráveis.
Junto ao caixão reinava
dignamente a viúva oficial, dona Divina,
recebendo os cumprimentos dos conhecidos, que eram muitos e não paravam
de chegar. O gesto de solidariedade por
pouco não redundava em riso ao desviar o olhar para o Zimba, ali ao lado, encaixotado e enfatiotado, mas com aquele
jeitão debochado, como se pudesse dizer: “Tô numa boa
aqui, minha gente.” O pessoal se continha, porém.
Em seguida começou o
show musical, que de fúnebre não tinha nada. O cavaco chorou e o violão atacou
um repertório de levantar defunto, mas não foi o caso, embora houvesse quem
jurou ter visto o Zimba dar uma leve
agitada na sua morada transitória, impressão forçada pelas doses de bebidas
ingeridas por quem observou a improvável movimentação no ataúde.
Horas antes, em caminhada
à beira do Guaíba, dois amigos,
ex-colegas de trabalho do falecido, comentaram o passamento do Zimba, Um deles explicou
porque não iria ao velório e tão logo terminou a explicação foi atingido por
uma pomba, vinda dos céus. Sim, uma pomba desgarrada e desorientada, acertou o
caminhante, numa ação jamais vista .naquelas paragens.
- Só pode ser coisa do
Zimba. Está me mandando recado -, assombrou-se o atingido pelo projétil columbófilo.
Corta novamente para a
capela mortuária., onde o amigo Igor, cantor
da noite, não resiste a emoção e
sai antes da encomendação, aos prantos, enquanto a neta do encomendado,
numa cena tocante, dava voltas no caixão
declamando “te amo, meu vozinho.” Zimba era um homem que prezava a família, tanto assim que tinha duas.
Histórias escabrosas
envolvendo o personagem, algumas francamente exageradas, mas todas com epílogos
engraçados, foram recordadas, provocando risadas dos circunstantes. Entre elas, a da volta dele ao lar, depois de
três dias de folia carnavalesca. Insone, precisou fugar num momento de
distração de dona Divina, que ameaçava
cortar seu membro mais precioso com uma
afiada faca churrasqueira, caso caísse no sono. Outra feita, escapuliu às
pressas do consultório médico, onde se submeteria a um toque retal, quando
percebeu que o urologista possuía mãos e dedos graúdos como um jogador de
basquete. “Expliquei à recepcionista que estava mesmo era com problema no
joelho e me mandei”, teria revelado na ocasião.
Perto do meio dia, a
filha mais velha do Zimba começou a avisar: “Deu gente, acabou, acabou. Podem
ir embora, terminou, terminou. Obrigado por terem vindo, mas tá na hora. Vão
embora”.
O pessoal não entendeu a
pressa da moça, mas o imperativo das ordens dela começou a esvaziar a
capela. O procedimento tinha razão de
ser: Zimba e seu caixão precisariam fazer
um curto passeio antes da viagem eterna.
Ocorre que um civilizado acordo
garantiu um segundo velório, este no litoral e exclusivo para a loira
que dividia o trefego e tão amado Zimba. Não se tem notícia de quem costurou esse nobre e generoso acordo,
mas, sem dúvida, foi um cidadão de bem e
certamente uma pessoa precavida, que ao evitar a presença “daquela outra” no
velório familiar, evitou igualmente constrangimentos de parte a parte. E lá se
foi o Zimba com seu esquife no carro
funerário, em sua última passagem de ida e
volta pela Freway.
Entretanto, contrastando
com o concorrido velório de Porto
Alegre, a despedida no litoral foi melancólica, para uma única pessoa, mas
justa para quem tinha aguentado
estoicamente nos últimos anos, as
inconstâncias do parceiro compartilhado.
Zimba não era fácil, mesmo assim mereceu lágrimas sinceras da
companheira de tantos prazeres e uma oração que visava, acima de tudo,
redimi-lo das intensidades cometidas, o que talvez pudesse ajudá-lo no
julgamento junto ao Criador, pensava a crédula senhora.
Findo as atos litorâneos,
Zimba voltou e pode, afinal, descansar em paz, só a espera da cremação, mas
ainda assim precisou se dividir: as cinzas foram repartidas, de forma
igualitária entre as partes de Porto
Alegre e do Litoral.
(Só espero que, por causa
deste texto, o Zimba não me atire um urubu na cabeça nas minhas caminhadas por
Ipanema. Zimba, aceite como um tributo a uma figura ímpar!)
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