segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Urgência na nação amiga


* Publicado nesta data em coletiva.net
Digamos que numa nação amiga um poderoso vírus ameace boa parte da população  e o governo decida construir, de forma urgente e em tempo  recorde,  um hospital para atender os casos que começam a ser registrados em vários  pontos do país. O exemplo veio da China,  que ergueu em apenas 10 dias um hospital com mil leitos para fazer frente aos efeitos do coronavirus.

Na nação amiga o primeiro problema  é escolher o local onde será construído o  hospital. Os estados da federação entram na disputa pela a obra, porque ela representaria um pesado investimento federal, movimentando toda a economia regional e gerando preciosos empregos. Enquanto isso, as cidades com potencial para sediar o hospital enfrentam forte resistência da população, por conta do temor que o contágio se alastrasse. O debate consume mais de 30  dias, com ferozes enfrentamentos nas redes sociais entre os contra e os a favor da implantação do complexo hopitalar.

Outros 30 dias  foram consumidos para decidir se o projeto executivo da obra seria licitado ou não, tendo em vista tratar-se de uma iniciativa emergencial. O Ministério Público exige licitação depois de mais de três semanas de análise do caso.  Feito o projeto, devidamente licitado, o Tribunal de Contas aponta superfaturamento nos custos e determina nova licitação.  A segunda empresa colocada no  processo apela para uma ação judicial, alegando que deveria ser a vencedora. O caso vai para o Supremo da nação amiga que, naturalmente, fica dividido e precisa de três sessões para chegar a uma decisão. Apenas o voto  de uma ministra  demandou uma sessão inteira, ninguém entendeu nada dos argumentos dela, mas contribuiu para os mais 45 dias de atraso.

O presidente da República chega a cogitar a criação de uma estatal para tratar do empreendimento, mas acaba voltando atrás. Só que a indecisão deixa tudo em suspenso por uma semana.
Finalmente, o local é escolhido, o projeto  liberado e começa nova etapa e nova discussão: licitar ou não a execução da obra. Mais  60 dias de idas e vindas burocráticas, pareceres  do MP, intervenções na Câmara e no Senado, mais denúncias de sobrepreço, apontamentos do Tribunal de Contas, liminares e decisões judiciais, até que a obra possa ter início.

Começa, enfim, a construção que, porém, é suspensa logo na primeira semana. Motivo: sondagem geológica não apontou a existência de uma enorme pedra que aparece agora no terreno.  O projeto precisa ser refeito. Mais 60 dias de atraso.  A obra é retomada, mas não avança porque  a  fiscalização do meio ambiente descobre um pequeno butiazeiro na vizinhança do terreno e embarga a construção. Nova alteração no projeto e mais 60 dias de retardo.

Tudo resolvido, a construção para novamente devido a paralisação dos operários por falta de pagamento. A empreiteira alega atraso nos repasses do governo.  O governo argumenta  que precisa uma suplementação orçamentária e isso exige aprovação do Congresso.  Foram mais 90 dias de atraso, incluindo um recesso, e de acalorados debates e custosas negociações, nada republicanas, com os aliados. O processo legislativo só não se arrasta mais porque o Executivo lança mão de uma medida provisória para agilizar a tramitação, com protestos veementes da oposição.

Quase dois anos depois, quando a obra com seus 50 leitos finalmente fica pronta, a população infectada cresceu em progressão geométrica. Nem assim o hospital começa a funcionar: os bombeiros não permitem a abertura, cobrando o inexistente plano de prevenção contra incêndios.    Isso não impede que o governo da nação amiga, diante do alastramento do virus, anuncie que vai construir um segundo  hospital...

Determinadas coisas só acontecem na nação amiga.

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