domingo, 28 de março de 2021

A moça do supermercado - Capítulo 3

*Inspirado em fatos reais, ligeiramente ficcionados.

Pela enésima vez ele ouviu aquela maldita senha:

- CPF na nota, senhor?

Só que dita por Alexia, a moça da caixa pela qual estava perdidamente apaixonado, adquiria para ele uma conotação poética.  Era dado a exageros literários o professor enamorado, ainda mais diante da voz suave dela. Ele sempre concordava em informar o CPF que era a forma de ficar mais alguns segundos junto a sua musa supermercadista.

Pensou se um dia não valeria mudar o ritual, não aceitar incluir aquela sequência de números para controle do leão do Imposto de Renda e responder a indagação com outra, direta e ousada.

- Aceitas o convite para um jantarzinho?

Haveria formalidade no convite, assim era o seu jeito. Entretanto, sem que conseguisse controlar, parte do convite pensado escapou em voz alta e foi ouvida pela moça:

- ...um jantarzinho?

- O senhor falou alguma coisa?

- Hã, sim, quero dizer, não!

O ato falho foi ouvido também pelo garoto de cabelo moicano que ajudava  a empacotar as mercadorias.

- Acho que o tiozão  quer te pegar, - advertiu o indiscreto, depois que o professor, um tanto constrangido, saiu com suas compras.

- Bem capaz! Um senhor tão bonzinho, simpático, respeitoso. Até já meu deu um livro de presente.

- Aí tem! – insistiu o moicano fake.

- Bem capaz!, retrucou de novo a moça.

A todas essas o cerco continuava, agora com uma logística que o professor apostava que daria resultado. Como controlava todos os horários da moça, passou a vigiar as paradas de ônibus próximas ao supermercado. Depois de duas ou três incursões,  bingo, lá estava ela à espera da condução para casa, num fim de tarde. Só que o ônibus que ela tomaria, um articulado fumacento, estava se aproximando rapidamente e ele teve  que acelerar seu automóvel, modesto 1.0  de potência, para atingir o alvo na parada antes do coletivo.  Assim que chegou, o mostrengo articulado resfolegou atrás do seu carro, mas deu tempo dele fazer sinal para ela,  que, de início, não  o reconheceu, ao que ele gritou “carona?”. Ela ainda hesitou,  mas acabou entrando pela frente no carro, enquanto o motorista do coletivo já dava sinais de impaciência, acelerando sua máquina desnecessariamente.

- Bah, como o senhor  me reconheceu? Não vai sair do seu caminho?

Ele deu a desculpa de que passava regularmente por ali e, não, não sairia de seu roteiro habitual, pois morava na mesma direção  dela, mesmo sem saber, ainda, para que bandas ficava a casa da moça.

Ao ajustar esse detalhe com ela, pode observar que a caroneira vestia uma saia curta, reveladora de um par de joelhos bem torneados e indícios de coxas atraentes. Ficou perturbado com a  imagem e, a custo, conteve a vontade de escorregar a mão  até os membros à mostra  e depois aventurar-se mais acima.

Foi ela quem tomou a iniciativa da conversa, falando do livro que tinha recebido dele, Lolita, de Nabokov, e se queixou que não tinha entendido muito bem o enredo. “Parece que o homem da história é mais velho que a guria, uma coisa estranha. Ainda se tivessem figuras pra ajudar a compreender, ficava melhor, o senhor  não acha?”.

- Hã, hã, claro, -  limitou-se a responder, mas, na verdade, ele pensou “Céus, onde estou metido!”

De repente, mais uma surpresa negativa estava reservada para ele:

- Pára, Pára.- pediu ela, quase gritando.

- O que aconteceu?-

- Pára que eu vi agora o Michael, que é meu amigo e mora perto da minha casa. Aí o senhor  não precisa me levar até lá.

O estraga prazeres do Michael era um cabeludo, andrajoso nas suas calças e jaqueta jeans surradas. Pilotava uma moto de baixa cilindrada, usada para  entregas da Pizzaria do Bob, “a melhor pizza do pedaço”, conforme estampado na caixa traseira do veículo.

Depois de um “brigado, brigadão mesmo”, lá se foi ela, empoleirada na moto com a descarga aberta, cabelos esvoaçantes, porque  o motoboy não tinha outro capacete, além do dele, cheio de adesivos e uma frase em destaque: “Deus é Fiel”.

O professor perdera mais uma batalha, mas tinha certeza que a guerra não.

 (continua)

 

sábado, 20 de março de 2021

A moça do supermercado – Capitulo 2

*Inspirado em fatos reais, mas nem tanto

O tiozão se encantou com a moça do supermercado desde a primeira vez que a viu empacotando as compras dele.  O encantamento foi tão intenso que ele passou a assediá-la em pensamentos.  Chegou mesmo a fantasiar uma noitada de luxuria, da qual foi despertado com um pedido prosaico à beira do caixa:

- CPF na nota, senhor?

A moça tinha lá seus predicados  e mexia não apenas com o imaginário mas também  com o bolso dele, eis que se tornara um compulsivo consumidor naquele supermercado.  Frustrado, porém, com sua incapacidade para uma abordagem mais direta ao alvo de sua obsessão,  decidira  não mais frequentar a loja.  Tinha que ficar longe da tentação, pensou e prometeu.

Só que o recolhimento durou menos de um mês e logo lá estava ele consumindo o  essencial e o acessório, só para  poder interagir por  breves momentos  com sua musa. De tanto frequentar aquele ponto, ele sabia toda a escala de trabalho dela e passou a ser reconhecido pela moça a cada presença.

- Oi, tudo bem com o senhor?

Aquele “senhor” doía, mas era melhor do que “tio” e o sorriso compensava, mesmo que fosse atenuado pelo aparelho corretivo nos dentes.

Ainda sem coragem para iniciativas mais diretas, optou por mimoseá-la com pequenos agrados que fossem simbólicos, entregues discretamente na caixa, com uma desculpa encaminhada e num formalismo adequado a sua idade.

- Não me leve a mal, mas acho que isso aqui tem tudo a ver contigo. Poderias aceitar?

O primeiro agrado foi sugestivo: o livro Lolita, do russo Nabokov, que relata ocaso amoroso entre um professor de meia idade, como ele, e uma menina de 12 anos, o que não era o caso, mas, enfim, valia as segundas e terceiras intensões contidas na oferta literária.

Ele ficou ligeiramente decepcionado quando ela perguntou: “Tem bastante figuras neste livro? Gosto de livros com bastante figuras.” Aí se deu conta de que devia ter começado com o Pequeno Príncipe ou que a moça estava mais para as revistas Contigo e  Ti-Ti-Ti do que para os romances.

Foi uma brochada mental, mas ele logo se recuperou porque passou a imaginá-la atendendo no caixa vestida apenas com o crachá, que cobria só o umbigo e trazia estampado aquele nome que para ele era sinônimo de erotismo: Alexia. Durou pouco, porém, a fantasia, desmanchada por aquela maldita frase.

- CPF na nota, senhor?

(continua)

 

sábado, 13 de março de 2021

Despedida de solteira

 *Inspirada em fatos reais, mas os nomes são fictícios

Alceu faz o gênero pegador jeitoso. É do ramo, mas cerca o naipe feminino com parcimônia, em fogo lento, mas determinado. Foi assim com Carla, que conheceu num evento político em Brasília e que preencheu todos os predicados que ele aprecia nas mulheres:

- Era uma morena do tipo mignon, com  tudo no lugar,- vangloriu-se.

Na sequência, Alceu  precisou fazer um bom investimento, estabelecendo uma ponte área Porto Alegre-Rio, onde a moreninha residia. Eram tempos pré-pandemia.  “Valeu cada checkin”, garantiu faceiro.

Ele estava vivendo nesse êxtase quando recebeu a convocação da carioca:

-  Mor, vem pra cá no fim de semana. Vou ficar te esperando ansiosa.

Alceu revela que foi difícil controlar a excitação corporal durante o voo, cada vez que lembrava do jeito como ela fizera a convocação.  O melhor foi a surpresa que a amada havia reservado: uma pousada na região dos Lagos, onde poderiam ficar bem à vontade no fim de semana e mais um pouco.

- Foi uma verdadeira maratona etílica, gastronômica, amorosa. Não havia hora nem lugar para aquilo. Bastava uma bebidinha para nos atiçar de novo. Loucura, loucura, loucura,- vangloriou-se de novo, apelando para uma imitação fajuta do Luciano Huck.

Na última transa do último dia, ainda relaxados na cama redonda e desfrutando da agradável brisa que vinha de fora, olho  no olho, os dela marejados, Carla fez uma revelação:

- Mor, esta foi a última mesmo. Meu casamento está marcado para o próximo sábado, mas eu precisava ficar com esta lembrança.

Foi um choque tão grande para Alceu que ele não quis saber de toda a história, que  a moça insistia em contar, desculpando-se, agora entre soluços. Desde então, ele nunca mais foi o mesmo e hoje vagueia pelos eventos políticos na vã esperança que apareça, entre convidados  chatos, uma moreninha com tudo no lugar, enquanto afirma lamuriento:

- Pode parecer uma história boba, mas só quem viveu um grande amor e, de repente, perdeu tudo, vai entender o que estou sentindo.

Ao consolá-lo só  me ocorreu dizer que assinaria embaixo.

 

sábado, 6 de março de 2021

A moça do supermercado

 *Uma crônica  metida a conto.

Foi encantamento à primeira compra no supermercado. Enquanto as mercadorias passavam pelo ritual da caixa, ele se embevecia cada vez mais com os gestos da moça  que atendia naquele ponto. O modo gracioso  como ela pegava  cada produto, o jeito firme de desdobrar as sacolas de plástico e nelas introduzir as compras, cuidando para que tivessem afinidades, os dedos longos, com unhas pintadas de cor  escura,  acionando as teclas dos controles da  sua estação de trabalho e toda a atividade controlada por grandes olhos negros, realçados pela máscara protetora que limitava a visão à parte superior do rosto, aparentemente bem moldado e de pele morena.

O conjunto visível da obra atiçou ainda mais o interesse dele. Duas ou três tatuagens ornavam aqueles braços ágeis.  O cabelo liso castanho, era preso com um coque, comum a todas as outras moças, assim como o enfeite que arrematava o arranjo na cabeça. Mas no caso da   musa do varejo o resultado parecia feito só para realçar o charme dela.  Ficava imaginando como seria de corpo inteiro, já que  operava sentada, confinada e enfileirada como as parcerias de oficio, sem permitir uma visão mais ampla dos predicados estéticos da cintura para baixo. Isso pouco importava porque o que lhe fazia bem era a imaginação aguçada.

O dedo anular da mão esquerda portava uma aliança, ou seria um anel?  Mais imaginação correndo solta. A aliança significava um compromisso afetivo ou era uma forma de afastar tiozãos assediadores, como ele? Teria ela um relacionamento sério no melhor estilo  das redes sociais ou estaria à espera de um grande amor ou, ainda, na melhor das hipóteses, pensou, seria livre, leve e solta? Que histórias viveria além da firma? Voa pensamentos, voa!

O nome no crachá remetia às personas dos apps, Alexia, mas a voz era  extremamente suave, mesmo quando  perguntava:

- O senhor vai querer CPF na nota?

Só o que destoava na garota era aquele “senhor”.

Ele passou a frequentar o mesmo  supermercado mais do que devia e o efeito na sua conta bancária logo se fez sentir. Uma forma de chamar a atenção de Alexia foi adquirir produtos caros, de preferência importados, especialmente sugestivos vinhos e espumantes, as vezes cervejas de nomes estranhos, como quem esperava o momento adequado para indagar.

- Gostas de beber um espumante? Ou prefere uma cerveja?

Então, animou-se e  junto com o dinheiro das compras, deixou um bilhete. “Me liga (...). “, acompanhado do número do  celular.  Quando veio a esperada ligação, estava tudo  programado na mente dele: o convite para um encontro, a pronta aceitação e também de pronto, depois do happy regado a espumante rosê, já estavam dividindo a cama  num motel próximo ao emprego dela. Tudo o que ele imaginara em realizar  e mesmo o que nem imaginara, iria acontecer,  porque estava diante de um furor em forma de mulher e amante.   A noitada só terminou de madrugada quando se aproximava o turno dela no supermercado, mas  ele ainda insistiu em um último  e rápido embate sexual mesmo que ela estivesse vestida e pronta para partir. Rapidamente ele tomou a iniciativa de despi-la e quando começou o ritual, a imaginação, que já  voava bem alta, foi desfeita de repente:

- Senhor, senhor, vai querer CPF na nota?

- Hein? O quê? CPF? Ah, não precisa, obrigado.

Levemente ruborizado, como quem fora flagrado num ato obsceno, recolheu as compras e saiu da loja, enquanto exibia um sorriso maroto, que aos  olhos dos circunstantes parecia não fazer sentido. Mesmo com o sonho desfeito abruptamente, estava feliz pela sensação de ter vivido uma inesquecível aventura amorosa com Alexia. Até  gostaria de repetir a aventura,  mas por via das dúvidas nunca mais voltou aquela loja. Alexia, como as vozes femininas dos apps, definitivamente jamais se corporificaria por inteiro diante dele.