*Uma crônica metida a conto.
Foi encantamento à
primeira compra no supermercado. Enquanto as mercadorias passavam pelo ritual
da caixa, ele se embevecia cada vez mais com os gestos da moça que atendia naquele ponto. O modo gracioso como ela pegava cada produto, o jeito firme de desdobrar as
sacolas de plástico e nelas introduzir as compras, cuidando para que tivessem
afinidades, os dedos longos, com unhas pintadas de cor escura, acionando as teclas dos controles da sua estação de trabalho e toda a atividade
controlada por grandes olhos negros, realçados pela máscara protetora que
limitava a visão à parte superior do rosto, aparentemente bem moldado e de pele
morena.
O conjunto visível da
obra atiçou ainda mais o interesse dele. Duas ou três tatuagens ornavam aqueles
braços ágeis. O cabelo liso castanho,
era preso com um coque, comum a todas as outras moças, assim como o enfeite que
arrematava o arranjo na cabeça. Mas no caso da
musa do varejo o resultado
parecia feito só para realçar o charme dela.
Ficava imaginando como seria de corpo inteiro, já que operava sentada, confinada e enfileirada como
as parcerias de oficio, sem permitir uma visão mais ampla dos predicados
estéticos da cintura para baixo. Isso pouco importava porque o que lhe fazia
bem era a imaginação aguçada.
O dedo anular da mão
esquerda portava uma aliança, ou seria um anel? Mais imaginação correndo solta. A aliança
significava um compromisso afetivo ou era uma forma de afastar tiozãos
assediadores, como ele? Teria ela um relacionamento sério no melhor estilo das redes sociais ou estaria à espera de um
grande amor ou, ainda, na melhor das hipóteses, pensou, seria livre, leve e
solta? Que histórias viveria além da firma? Voa pensamentos, voa!
O nome no crachá
remetia às personas dos apps, Alexia, mas a voz era extremamente suave, mesmo quando perguntava:
- O senhor vai querer
CPF na nota?
Só o que destoava na
garota era aquele “senhor”.
Ele passou a frequentar
o mesmo supermercado mais do que devia e
o efeito na sua conta bancária logo se fez sentir. Uma forma de chamar a
atenção de Alexia foi adquirir produtos caros, de preferência importados,
especialmente sugestivos vinhos e espumantes, as vezes cervejas de nomes
estranhos, como quem esperava o momento adequado para indagar.
- Gostas de beber um
espumante? Ou prefere uma cerveja?
Então, animou-se e junto com o dinheiro das compras, deixou um
bilhete. “Me liga (...). “, acompanhado do número do celular.
Quando veio a esperada ligação, estava tudo programado na mente dele: o convite para um
encontro, a pronta aceitação e também de pronto, depois do happy regado a
espumante rosê, já estavam dividindo a cama
num motel próximo ao emprego dela. Tudo o que ele imaginara em realizar e mesmo o que nem imaginara, iria acontecer, porque estava diante de um furor em forma de
mulher e amante. A noitada só terminou de madrugada quando se
aproximava o turno dela no supermercado, mas ele ainda insistiu em um último e rápido embate sexual mesmo que ela estivesse
vestida e pronta para partir. Rapidamente ele tomou a iniciativa de despi-la e
quando começou o ritual, a imaginação, que já
voava bem alta, foi desfeita de repente:
- Senhor, senhor, vai
querer CPF na nota?
- Hein? O quê? CPF? Ah,
não precisa, obrigado.
Levemente ruborizado,
como quem fora flagrado num ato obsceno, recolheu as compras e saiu da loja,
enquanto exibia um sorriso maroto, que aos
olhos dos circunstantes parecia não fazer sentido. Mesmo com o sonho
desfeito abruptamente, estava feliz pela sensação de ter vivido uma
inesquecível aventura amorosa com Alexia. Até
gostaria de repetir a aventura,
mas por via das dúvidas nunca mais voltou aquela loja. Alexia, como as
vozes femininas dos apps, definitivamente jamais se corporificaria por inteiro
diante dele.
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