quarta-feira, 29 de março de 2017

Fui ao Fundo

Sou um dos felizes beneficiários da liberação das contas inativas do FGTS, até agora a melhor iniciativa do governo Temer. Nascido em janeiro, tive o benefício adicional de poder acessar a grana já na primeira leva. Dito isso, logo que saíram as primeiras informações sobre o processo tratei de pesquisar e descobri que existia um saldo do meu Fundo vinculado a uma fundação estatal, último emprego que tive no regime CLT.  
Passei e me ligar em todos os informes e entrevistas à respeito, que davam conta de que no caso de correntistas da CEF o depósito seria feito automaticamente em conta corrente ou de poupança. Era o meu caso e, finalmente, descobri pelo menos uma vantagem de  ter conta  na Caixa.
Ledo engano. Busquei os extratos pelo menos três vezes e nada do depósito da  grana que o Temer  me prometera.
Na primeira ida ao Centro (no período sabático que estou gozando evito ao máximo ir ao Centro) aproveitei para consultar  uma das gerentes de conta.  Perdi meu tempo.
- Lamento, mas o sistema está fora  do ar -, alegou a moça.
Já desenvolvi a tese que O Sistema é  que domina o mundo (http://viadutras.blogspot.com.br/2013/12/o-sistema.html ), mas isso é outro  papo. Continuei pesquisando os extratos e nada do dinheiro inativo virar ativo na minha conta.
Nova ida ao Centro e nova consulta à mesma gerente da Caixa, que pede um documento de identidade e passa pelo  menos cinco minutos digitando no seu computador e interagindo com O Sistema.
-  Realmente, está  aqui -, informou triunfalmente o que eu já sabia, e acrescentou:
- Trouxe a Carteira do Trabalho?
Tive que explicar que nas fundações estatais, como no serviço público em geral, as nomeações e exonerações ocorrem via Diário Oficial, não havendo, portanto, registro na Carteira do Trabalho. Seguiu-se um diálogo beirando o nonsense
- Então vou verificar quais os documentos que o senhor vai precisar trazer-, avisou a gerente.
- Como assim? Documentos? Moça, sou correntista. O dinheiro  deve ir direto  para a conta, ouvi isso nas entrevistas do próprio presidente da Caixa.
- Mas o senhor  não trouxe  a carteira -, insistiu ela.
- Não  trouxe  porque não é preciso  e, além disso, a conta está vinculada a uma fundação que não faz registro em carteira.
-  Vou ver qual é o procedimento correto -, escapuliu ela para um  espaço envidraçado, provavelmente em busca de socorro com um superior. 
Foi quando pude notar que a moça era bem apanhada, eu diria mesmo que se enquadrava como caldável. Decidi, então, que fosse qual  fosse a resposta não me exaltaria com ela. Poderia ser firme, mas haveria de ser cordato,  quase meigo, no trato com a musa bancária. Que voltou sorridente:
- Está resolvido. Não precisa trazer documento e em cinco dias úteis o dinheiro estará na sua  conta.
Agradeci, afetando entusiasmo e me despedi com elogios à presteza e eficácia  do atendimento.
O que a gente é obrigado a fazer por R$ 18,36!

domingo, 26 de março de 2017

DezMiolados e desmiolados

Éramos nove (o Paulo Motta foi desfalque sentido de última hora) feito guris que vão sair pela primeira  vez com a namorada, consumidos pela ansiedade.  Os mais ansiosos eram o  Auber Lopes de Almeida, já por natureza agitado,  e o Paulo Pruss, normalmente a tranquilidade em pessoa. Afinal eles eram os  principais responsáveis pelo motivo que nos reunia no Centro Municipal de Cultura num sábado à tarde (25/03) -  o lançamento do livro DezMiolados.
A grande ansiedade dizia respeito a uma única questão: Será que vai aparecer gente?  Vale repisar que DezMiolados foi uma sacada do Auber e do Paulo, que conseguiram reunir gente que gosta de escrever e se expressava especialmente nas redes sociais. Gente de variados  perfis profissionais – engenheiro, arquiteto, médico, administrador, publicitário  e sobretudo jornalistas. Os textos, quatro por autor, tem predominância de crônicas, mas são oferecidos  também contos e resgates de personagens e instituições de Porto Alegre. Ou seja, uma obra atraente.
“Mas será que vai aparecer  gente?, ”, insisti com o Pedro Chave, companheiro jornalista de outras jornadas, que tive o prazer de reencontrar graças ao DezMiolados.  “Tem que ser muito desmiolado para vir aqui”, alguém, talvez eu mesmo, fez a graça óbvia, mas ninguém riu porque persistia no ar aquela tensão da espera.
O lançamento fora bem  divulgado, com entrevistas  no programa do Felipe Vieira na TV Urbana, no Estação Cultura da TVE, como Newton Silva, no programa do Bibo Nunes, na FM Cultura, com o Luiz Dill  e no Show de Bola, da Rádio Gáucha, com o Zé Alberto Andrade, além de alentadas notas nas bem frequentadas colunas do Roger Lerina na ZH e do Fernando Albrecht, no JC. Isso sem contar as redes sociais que, afinal, foram a origem do projeto que estava se materializando.
“Mas será que vai aparecer gente?”,  cada um se perguntava.
As cinco da tarde em ponto abrimos os trabalhos e o povo foi chegando aos  poucos. A cada autógrafo a tensão diminuía.  Fiquei entre o Pedro Chaves, mais o Serginho Araújo e o Carlos Leão (o arquiteto) e contabilizávamos ao longe a pilha de livros  diminuindo.  A cada leva que chegava, comentávamos, Pedro e eu, entre reminiscências e propostas para reformar o jornalismo e a civilização ocidental:
- Mais um ônibus chegando do Interior! Assim que baixar a ponte do Guaíba vem mais...
Depois dos ônibus vieram as  kombis, e na sequencia os  carros médios e pequenos, motos, bicicletas,  até que o Pedro, impaciente, vaticinou:
- Só está faltando o skatista.
E não é que, de repente, surgiu no recinto  um garoto com seu skate na  mão, mas parece que não estava interessado no nosso livro e sim  num espetáculo de dança que logo começaria no Teatro Renascença. Diferente dele, foi saudada com entusiasmo a última compradora, a sobrinha do escritor Josué Guimarães, cujo nome me escapa e que conseguiu reunir  novamente os dispersos  dezmiolados para o derradeiro autógrafo e uma foto coletiva.
Foi quase uma centena de presenças entre compradores e prestigiadores. Acho que levei alguma vantagem sobre os outros confrades porque a família é grande e esteve presente com força no evento, incluindo os netos, além de amigos e amigas de fé.  
Participar da coletânea foi uma experiencia e tanto, mesmo que metade dos parceiros de livro eu só viesse a conhecer em função da obra, ou por isso mesmo.  E, embora não  nos  mova ficar rico com o livro,  o lançamento já garantiu o retorno do investimento.
Valeu Anderson Cerva,  Auber Lopes de Almeida, Carlos Dreyer, Carlos  Leão, Paulo Motta, Paulo Pruss, Pedro Chaves, Ronaldo Bastos e Sergio Araújo.
Agora, que venham as DezMioladas, próximo desafio literário da Farol 3 Editores.


sábado, 11 de março de 2017

Contos da Mesa ao Lado: A Mulher de Óculos Escuros

*Publicado originalmente em 19/10/2009 e não custa alertar: é ficção.

Sivaldo, funcionário público, meia idade, era muito preocupado com o que escreveriam no seu obituário, se é que mereceria algumas linhas destacando sua trajetória pessoal e profissional. Sabia que não haveria muito a dizer, além dos registros obrigatórios, sua preferência clubística, onde trabalhou, um ou outro projeto em que esteve envolvido, talvez a opinião generosa de algum ex-colega ou familiar. Não, certamente ele não mudara o mundo nem influenciara pessoas.

O que Sivaldo temia, na verdade, era a possibilidade de eventos com potencial de escândalo no seu enterro. Traduzindo: presenças femininas indesejáveis. Por isso, tratou de se prevenir e foi enfático na recomendação a seus irmãos e a um amigo de fé:

- Se aparecer alguma mulher de óculos escuros, que vocês não conheçam, façam o que for necessário para tirar ela do recinto. Não quero escândalo no meu velório.

A preocupação se justificava. Queria preservar a família, a futura viúva e os filhos, de um vexame na hora da dor. Ele não estaria lá para se explicar, a não ser amorfamente como defunto, incapaz de reagir a um potencial barraco. Por isso, insistia com os irmãos.

- Não quero escândalo no meu velório. Cuidado com as mulheres de óculos escuros.

Tinha uma implicância com mulher de óculos escuros em velórios e enterros. Achava que os óculos encobriam olhares irônicos, cínicos ou ressentidos, próprios de uma ex, em relação ao morto e os presentes no ato fúnebre. Olhares do tipo “eu sei que vocês sabem quem sou e o que sei”.

Ainda estava vivo na sua memória o acontecido com um parente, encontrado morto em circunstâncias suspeitas – numa cama de motel, dentro do carro, jogado na rua, eram as versões, mas sempre ressalvando que ostentava um último esgar de satisfação.

Sucede que no dia do enterro do parente, um primo distante, apareceu a outra, calça jeans apertada,com os temíveis óculos escuros, dos bem grandes, e um filho no colo, exigindo seus “dereitos”. Não dava para negar a descendência: a criança, com dois ou três anos, era a miniatura do defunto, o mesmo cabelo encaracolado, o nariz levemente achatado e os olhos vigilantes do ex-parente. E a mãe ainda batizara-o de Junior, agregado ao nome do “pai”. Cildo, de Oracildo, Junior.

Então, aconteceu a cena clássica e patética. A mulher se debruçou sobre o caixão, com o Cildinho chorando no colo e gritava:

- Me leva junto, mor. A vida não tem mais sentido pra mim e pro Junior. Nós queremos estar contigo para sempre. Leva a gente, mor! assim mesmo, na forma reduzida de amor.

Não se viu uma lágrima derramada pela moça, talvez por causa daqueles enormes óculos de camelô, certamente um presente do falecido. Mas a dramatização era convincente.

- O que vai ser de mim e do Junior agora que ele nos deixou, choramingava a moça.

O velório virou um fuzuê. A viúva teve um faniquito e os filhos do ex-parente, já taludos, queriam partir para a agressão à incômoda visitante. Como mais alta autoridade presente no recinto, foi chamado a intervir.

- Minha senhora, permita que eu lhe explique algumas coisas, mas fora daqui, abordou jeitoso.

- O senhor não entende. O que aconteceu foi uma desgraceira. O que será de mim e do Junior agora, insistia a inconveniente.

O burburinho do ambiente já tomava proporções incontroláveis e ele negociando com a moça.

- Minha senhora, vamos lá fora conversar. O Oracildo falava muito bem da senhora e deixou instruções para que a gente cuidasse do caso, se ele viesse a faltar, continuou cerimonioso, insinuando providências prévias que nunca foram tratadas.

- Ah, é? Ele falou de mim e do Junior? O que ele disse? O que ele pediu?

A moça agora estava acesa com a possibilidade de algum legado deixado pelo falecido.

(continua)
Não se conhecem os desdobramentos futuros do caso, mas o fato é que a moça se acalmou e se retirou do ambiente fúnebre, com o Junior a tiracolo. Assim a família e os amigos puderem prantear seu ente querido sem outras interferências. A família, na verdade, estava vexada com o incidente. Todos sabiam que o falecido não era o que se poderia classificar de cidadão e chefe de família exemplar, mas daí a constituir outro lar no paralelo passava das medidas. Certamente o ocorrido já estava na boca do povo e seria motivo de muitas conversas entre as comadres e nas mesas de bares, uma situação insuportável. Já os amigos, testemunhas ou companheiros de algumas farras do falecido, não estavam nem aí para o constrangimento da família. Nessa hora é que a gente sabe quem são os verdadeiros amigos, pensou Sivaldo, com uma ponta de amargura.

Todas essas preocupações não saiam da cabeça do bom Sivaldo cada vez que imaginava como seria sua passagem para outra dimensão. Tinha claro que a família seria a principal vítima se houvesse algum escândalo como o ocorrido com o parente. Coitados, teriam que administrar um legado inconveniente e indesejado. Foi então que começou a fazer uma retrospectiva das vezes em que pulou a cerca, tentando identificar potenciais fatores e pessoas de risco.

Ele tinha certeza de que não apareceria nenhuma ex com filho no colo, a não ser que fosse armação, que um simples exame de DNA desmentiria, embora não evitasse o vexame e o diz-que-diz no velório. “Afasta-te de mim, pensamento diabólico”, dialogava internamente. Sivaldo sabia que uma ex, no oficial ou no paralelo, era encrenca para a vida toda, inclusive na hora da passagem para a vida eterna.

Ao passar a limpo a vida pregressa, registrou poucas transgressões, mas algumas foram bem escabrosas e outras bizarras. Ele lembrava bem o caso com uma contorcionista de um circo mambembe, que conhecera num boteco após a matiné. A moça atuava também como ‘partner’ do domador das feras e nas horas vagas fazia contorcionismos na cama e ronronava como um felino. O caso durara exatos 15 dias, o tempo de permanência do circo na cidade, mas suficiente para encontros diários num hotelzinho barato perto de onde as lonas circenses estavam instaladas. Não, pensou, essa não vai dar trabalho, o circo já deve ter sido desfeito e a moça provavelmente está exercitando seu sotaque castelhano, com viés catarinense, em outras plagas.

Depois veio o caso com aquela ex-freira, carente de afeto e de sexo, que decidiu descontar com ele os atrasados. O caso não prosperou por muito tempo porque a moça, ainda apegada aos preceitos religiosos, recusou-se a atender um fetiche dele para comparecer a um encontro vestida com o hábito de freira. Achava, entretanto, que a ex-freira, até pela sua formação, não se prestaria a um escândalo, mesmo porque agora dividia seus lençóis, devidamente casada, com um ex-seminarista.

Teve ainda aquele caso com aquela garçonete que precisava tomar um longo banho após a lida no restaurante e antes da lida sexual para minimizar o cheiro de fritura impregnado no corpo dela. Mesmo assim, às vezes ele achava que estava transando com uma batata frita ou um filé à parmegiana. Mais tarde, descobriu que ela dividia seus favores sexuais também com o marido de uma amiga, conforme confissão do próprio, o que conduzia a situação a um dilema: quem era o outro da outra? A garçonete talvez viesse a incomodar, mas ele torcia para que o marido da amiga fosse importunado em seu velório antes do que ele.

Registrava, com um misto de saudade e preocupação, o caso com aquela socialite casada, que lhe dava boa vida e todos os prazeres sexuais imagináveis. Foi o único caso com mulher casada e o escabroso da história é que o marido sabia e aparentemente não se importava com o relacionamento extraconjugal da mulher, tanto assim que os encontros eram na bela cobertura do casal. O caso terminou no dia em que o marido invadiu o quarto onde transavam e quis participar da brincadeira, insinuando-se mais para o amante do que para a mulher. Aí já era muita devassidão e Sivaldo tinha valores a preservar. A socialite, com sua coleção de óculos escuros de todas as grifes, era um perigo em potencial.

Começou a pensar em casos mais recentes e as preocupações aumentaram. Entre outros, houve aquele envolvimento com uma colega mais moça, que ele lutou muito para conquistar e depois viver uma relação de mais de três anos. Foi um relacionamento intenso e tumultuado. Intenso porque se permitiam tudo e tumultuado porque eram muito diferentes em quase tudo e só convergiam mesmo na hora do sexo. O rompimento fora traumático e isso deveria acender o alerta, mas conhecia bem o estilo da moça e ficava mais tranqüilo. Era uma dissimulada e se comparecesse ao enterro o faria com muita discrição e um belo óculos escuros, só para ter certeza de que estava mesmo morto.

Puxa, tão poucos casos e tanta angústia. Mas só de pensar no assunto, começou a sentir fortes dores no peito. “Será que chegou a minha hora?”, apavorou-se. “Vou ter que ligar para os meus irmãos para alertar sobre a mulher de óculos escuros...”


domingo, 5 de março de 2017

Coisas de mulher

O competente repórter Matheus Schuch, atualmente exilado em Brasília, postou outro dia uma análise sobre a obsessão das mulheres na sua relação com os potinhos, aqueles recipientes de plástico que servem para  acondicionar desde sobras  de comida  a quitutes que alguém preparou com carinho para nos agradar. Os tais  potinhos envolvem rituais de extremo rigor , sendo o mais importante o ato de devolvê-lo à proprietária. “Vocês podem esquecer de devolver qualquer coisa, mas a displicência com um potinho vai trazer consequência graves”, adverte o Matheus.  Pelo jeito, o jovem repórter deve ter enfrentado algumas broncas por  causa  de potinhos esquecidos  ou  extraviados.
Choveram comentários  na  postagem do repórter, a maioria de moças e senhoras, que confirmaram a constatação  dele e reforçaram a importância crucial da devolução, acrescentando que é  de bom tom não devolver a embalagem vazia, retribuindo  com alguma guloseima. Ah,  essas interesseiras, sempre exigindo reciprocidade.
Sei bem da utilidade dos potinhos nas lides domésticas, aqui em  casa não é diferente.  Mas o que me encanta mesmo é -  e atentamente observou o Matheus no caso dos  potinhos -  a dedicação do  naipe feminino  à determinados processos ou a certas formas de agir que podem levar a nós, os ansiosos masculinos, à  loucura.  O melhor exemplo é o manuseio da bolsa, aquele frenético ato em busca do molho de chaves, da carteira e, na pior das hipóteses, do celular que fica berrando para ser atendido. O mexe, remexe parece durar  uma eternidade até o encontro do  que procuram. A situação adquire contornos de dramaticidade quando a busca da carteira ocorre junto ao terminal eletrônico dos bancos, enquanto a fila de marmanjos resmungões vai crescendo atrás. E nada de surgir o cartão de crédito.  

Porém, não  quero passar a ideia de execração às mulheres pela devoção aos potinhos ou pelas atrapalhações com as bolsas. Não mesmo, ainda mais agora que se aproxima o Dia Internacional da Mulher. Na real, até mesmo as duas situações tem lá seu charme e é na simplicidade dessas ações cotidianas que se sobressai o valor feminino.  Ou, como já escrevi num momento de arroubo, reafirmo  que hoje e sempre gostaria que fosse realçado o lado divino, a porção celestial das mulheres, aquilo que elas tem de sublime e que nos leva a amá-las com toda a nossa energia e cometer loucuras de apaixonado em nome desse sentimento que, com certeza, merece as bênçãos da divindade. Mesmo que as vezes sejamos atazanados por causa de um potinho e de qualquer coisa perdida numa bolsa.