* Pubicado em coletiva.net em 05/10/2020
Os tempos pós-modernos
serão conhecidos futuramente como ARS/DRS , antes e depois das redes sociais. A
Era Digital, que logo será assim
batizada, remete, de imediato, para o enorme
impacto da redes nas nossas
vidas e da dinâmica que envolve o
processo da comunicação digital. E aí me
dou conta de que sou exemplo vivo da mutação (evolução ?) deste novo mundo. Há cerca de seis anos cursei um MBA de
Comunicação Digital e, desde então, o que consegui aprender naquele ano e meio
de curso já foi superado por outras
inovações, outros procedimentos, outros conceitos. Está certo que eu era um aluno medíocre, mas mesmo que fosse CDF seria vencido pela
evolução digital. Basta dizer que o
Whatsapp, hoje uma potência, recém estava engatinhando e buscando seu espaço
naquele período.
A disputa já não é pelo espaço, mas pelo nosso tempo, nossa
atenção. Como, porém, prestar atenção,
se a cada dia surge um novo processo, acompanhado de novos termos, antes mesmo
de termos assimilado os vigentes? Um exemplo
é o processo conhecido como Splinternet, que, pelo menos para mim que sou um
tanto desatento, revela outro termo, a
balcanização, referência ao ocorrido nos Bálcãs como a fragmentação dos países
que integravam a ex-Iugoslávia. Splinternet, junção em inglês de splinter
(fragmentação) e Internet, que alguns países passam a adotar, com controle e
regulação da web em seu território.
Assim, concebida para ter uma dimensão global, a Internet passaria a funcionar
de forma regionalizada. Convém acrescentar
que o termo balcanização é usado
de forma pejorativa, uma vez que as frações resultantes do processo seriam hostis
entre si, como ocorreu nos conflitos dos
Bálcãs.
Entretanto, o
documentário O Dilema das Redes mostra que as plataformas digitais conseguiram
capturar nossa atenção quase de forma permanente, moldá-la indiscriminadamente e
transformá-la num produto vendável. Produção original do Netflix, top 10 entre
nativos e imigrantes digitais, O Dilema das Redes desnuda e amplia o que de
alguma forma já sabíamos sobre os impactos do Facebook, do Twitter, do Instagram,
do Google e similares sobre nós e nossos filhos.
A produção também poderia
se chamar Os Arrependidos porque reúne depoimentos de profissionais que criaram
ou atuaram nas principais redes conhecidas e agora, cheios de culpas e
constrangimentos, revelam as facetas mais
obscuras e até mesmo práticas condenáveis envolvendo a operação das empresas de alta
tecnologia. O documentário começa com uma sentença dramática de Sófocles (“Nada
grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”), prenúncio de depoimentos e alertas perturbadores, em tom
apocalíptico, que viriam a seguir, tipo:
- as ferramentas criadas começaram a desequilibrar
as relações e o funcionamento da sociedade.
- pesquisas apontam que
milhões de americanos estão viciados em seus dispositivos eletrônicos;
- a geração Z, crianças
que nasceram por volta de 1996 e começaram a usar as mídias sociais na
adolescência, é uma geração inteira mais ansiosa, mais frágil, mais deprimida;
- houve um aumento
gigantesco na depressão e na ansiedade em adolescentes americanos
começando entre 2011 e 2013;
- esses serviços estão
matando pessoas e causando suicídios; mais de 100 mil garotas adolescentes nos
EUA se cortaram ou tentaram se machucar.
- a tecnologia deixou
de ter o papel de ferramenta para ser tornar um vício e um meio de manipulação.
- você está sendo
programado em nível mais profundo,
implantando dentro de você um hábito
inconsciente;
- eles tem mais
informações sobre nós do que jamais ocorreu: tudo está sendo assistido, rastreado, medido;
- criam modelos que preveem nossas ações e quem
tiver o melhor modelo, vence; cada ação sua é cuidadosamente monitorada e
registrada;
- nossa atenção é
vendida ao anunciante; nos últimos 10 anos as maiores empresas (do Vale do Silício)
estão no negócio de vender seus usuários;
- se você não está
pagando pelo produto, você é o produto;
- saímos da era da
informação para a da desinformação: as informações falsas levam mais lucro às
empresas, num modelo de negócios que lucra com a desinformação;
- “Existem apenas duas
indústrias que que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a da
software”. (Edward Tufte)
- as redes buscam três objetivos: o do engajamento, para
aumentar seu uso e manter você navegando, o do crescimento, que faça você convidar outros amigos, e o da
publicidade, para garantir que, enquanto tudo acontece, estejam lucrando o máximo possível com
anúncios.
Ao fim e ao cabo o que
interessa mesmo é gerar lucro aos acionistas e não valor à sociedade. E assim a
mudança que se requer virá pela vontade coletiva
e regulações governamentais, como propõem
alguns especialistas em seus depoimentos, mas sobretudo por uma nova motivação
financeira, como a que provocou agora a degeneração das redes sociais . Neste caso, qual a garantia de que não vai se
estabelecer um novo círculo vicioso, a nos manter como inocentes uteis digitais
dos grandes e manipuladores conglomerados? Aí só restará seguir a recomendação
do maior dos arrependidos, o
ex-executivo do Google, Tristan Harris : “Se puder sair das redes, saia”.