terça-feira, 6 de outubro de 2020

Inocentes úteis digitais

 * Pubicado em coletiva.net em 05/10/2020

Os tempos pós-modernos serão conhecidos futuramente como ARS/DRS , antes e depois das redes sociais. A Era Digital,  que logo será assim batizada, remete, de imediato, para o enorme   impacto da redes nas nossas vidas  e da dinâmica que envolve o processo da comunicação digital.  E aí me dou conta de que sou exemplo vivo da mutação (evolução ?)  deste novo mundo.  Há cerca de seis anos cursei um MBA de Comunicação Digital e, desde então, o que consegui aprender naquele ano e meio de curso  já foi superado por outras inovações, outros procedimentos, outros conceitos.  Está certo que eu era um aluno medíocre,  mas mesmo que fosse CDF seria vencido pela evolução digital.  Basta dizer que o Whatsapp, hoje uma potência, recém estava engatinhando e buscando seu espaço naquele período.

A disputa já  não é pelo espaço, mas pelo nosso tempo, nossa atenção. Como, porém,  prestar atenção, se a cada dia surge um novo processo, acompanhado de novos termos, antes mesmo de termos assimilado os vigentes?  Um exemplo é o processo conhecido como Splinternet, que, pelo menos para mim que sou um tanto desatento,  revela outro termo, a balcanização, referência ao ocorrido nos Bálcãs como a fragmentação dos países que integravam a ex-Iugoslávia. Splinternet, junção em inglês de splinter (fragmentação) e Internet, que alguns países passam a adotar, com controle e regulação da web em seu  território. Assim, concebida para ter uma dimensão global, a Internet passaria a funcionar de forma regionalizada. Convém acrescentar  que o  termo balcanização é usado de forma pejorativa, uma vez que as frações resultantes do processo seriam hostis entre si, como ocorreu  nos conflitos dos Bálcãs.

Entretanto, o documentário O Dilema das Redes mostra que as plataformas digitais conseguiram capturar nossa atenção quase de forma permanente, moldá-la indiscriminadamente   e transformá-la num produto vendável. Produção original do Netflix, top 10 entre nativos e imigrantes digitais, O Dilema das Redes desnuda e amplia o que de alguma forma já sabíamos sobre os impactos do Facebook, do Twitter, do Instagram, do Google e similares sobre nós e nossos filhos.

A produção também poderia se chamar Os Arrependidos porque reúne depoimentos de profissionais que criaram ou atuaram nas principais redes conhecidas e agora, cheios de culpas e constrangimentos, revelam as facetas mais   obscuras e até mesmo práticas condenáveis  envolvendo a operação das empresas de alta tecnologia. O documentário começa com uma sentença dramática de Sófocles (“Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”), prenúncio de  depoimentos e alertas perturbadores, em tom apocalíptico,   que viriam a seguir, tipo:

-  as ferramentas criadas começaram a desequilibrar as relações e o funcionamento da sociedade.

- pesquisas apontam que milhões de americanos estão viciados em seus dispositivos eletrônicos;

- a geração Z, crianças que nasceram por volta de 1996 e começaram a usar as mídias sociais na adolescência, é uma geração inteira mais ansiosa, mais frágil, mais deprimida;

- houve um aumento gigantesco na depressão e na ansiedade em adolescentes americanos começando  entre 2011 e 2013;

- esses serviços estão matando pessoas e causando suicídios; mais de 100 mil garotas adolescentes nos EUA se cortaram ou tentaram se machucar.

- a tecnologia deixou de ter o papel de ferramenta para ser tornar um vício e um meio de manipulação.

- você está sendo programado em nível  mais profundo, implantando  dentro de você um hábito inconsciente;

- eles tem mais informações sobre nós do que jamais ocorreu: tudo está  sendo assistido, rastreado, medido;

-  criam modelos que preveem nossas ações e quem tiver o melhor modelo, vence; cada ação sua é cuidadosamente monitorada e registrada;

- nossa atenção é vendida ao anunciante; nos últimos 10 anos as maiores empresas (do Vale do Silício) estão no negócio de vender seus usuários;

- se você não está pagando pelo produto, você é o produto;

- saímos da era da informação para a da desinformação: as informações falsas levam mais lucro às empresas, num modelo de negócios que lucra com a desinformação;

- “Existem apenas duas indústrias que que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a da software”. (Edward Tufte)

- as redes  buscam três objetivos: o do engajamento, para aumentar seu uso e manter você navegando, o do crescimento, que  faça você convidar outros amigos, e o da publicidade, para garantir que, enquanto tudo acontece,  estejam lucrando o máximo possível com anúncios.

Ao fim e ao cabo o que interessa mesmo é gerar lucro aos acionistas e não valor à sociedade. E assim a mudança que se requer virá pela  vontade coletiva e  regulações governamentais, como propõem alguns especialistas em seus depoimentos,  mas sobretudo por uma nova motivação financeira, como a que provocou agora a degeneração das redes sociais . Neste  caso, qual a garantia de que não vai se estabelecer um novo círculo vicioso, a nos manter como inocentes uteis digitais dos grandes e manipuladores conglomerados? Aí só restará seguir a recomendação do maior  dos arrependidos, o ex-executivo do Google, Tristan Harris : “Se puder  sair das redes, saia”.

  

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