segunda-feira, 29 de julho de 2019

De perto ninguém é normal


*Publicado nesta data em coletiva.net

A interceptação de conversas privadas das mais altas autoridades  do país  leva a duas conclusões, uma alarmante  e outra positiva. A alarmante: nunca foi tão  fácil hackear quem quer que seja. Quatro chinelões grampearam mais de mil pessoas, do presidente e sua família a membros do Congresso e do Judiciário.    A positiva: a divulgação de conversas hackeadas transformou o Brasil num país transparente por excelência.  Sabe-se de todos e de  tudo na República, onde de tédio não se morre.  

Um dos meus interlocutores nas caminhadas pelo calçadão de Ipanema enxerga neste segundo aspecto o grande mérito da ação – criminosa, é importante que se frise -  dos meliantes envolvidos no caso e atualmente presos na Policia Federal. Entende ele que a população tem todo o direito de saber o que pensam  e como  agem as autoridades, inclusive e principalmente as do mais alto escalão da República. 

No caso do presidente Bolsonaro entendo eu que isso é absolutamente irrelevante. O que pensa, quais suas intenções, suas idas e vindas nas decisões, de quem gosta e a quem rejeita, é expresso claramente pelo presidente nos  seus pronunciamentos e nas frequentes  postagens nas redes sociais. Mais transparência impossível. E que evolução para o país. Estou sendo irônico, esclareço.

Outro interlocutor eventual no calçadão, figura de grande projeção no meio jurídico e, por isso mesmo, com alto potencial de hackeamento, ao ser provocado sobre a interceptação  de mensagens de autoridades, afetou tranquilidade. “Comigo ficariam frustrados com o resultado”, respondeu. Entretanto, o provocador acha que este argumento reforça a posição que defende intransigentemente: se os conteúdos dos vazamentos não são reveladores de questões escabrosas,  não deveriam ser também motivos para queixas e ameaças de censura. Se não há o que esconder, não há o que reclamar.

Sei, não. “De perto ninguém é normal”, canta Caetano Veloso e essa  é uma verdade até para os ministros  do STF, certamente em polvorosa a essa altura com a informação de que  parte da corte teria sido alvo da quadrilha.

Já eu estou de boa, embora me sentindo discriminado e  cidadão de segunda classe por ter sido solenemente ignorado pelo quarteto ou seus asseclas. Mais de mil hackeados e eu continuo invicto, como postei no Face.  Pensando bem, melhor assim. Imagina se vazam  conversas menos civilizadas – mas fora do contexto, como é comum alegar -  com alguma caldável, o que vou ter que dar explicações! Me deixem fora dessa.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

O país dos SN


* Publicado  nesta data no coletiva.net

A facção que mais cresce no Brasil é a dos Sem Noção, que passarei a tratar por SN. Começa pelo presidente Bolsonaro, patrono da causa, que a cada semana, às vezes menos, comete um ato digno de SN. Um dos  mais recentes, entre negar que tenha gente que passe fome no  país e provocar os  governadores nordestinos,  foi cogitar o filho Eduardo para embaixador nos EUA. Até  bolsonaristas fervorosos, mas não alinhados aos SN, ficaram com vergonha alheia do seu líder.

Outro que ganha relevo entre os SN no governo é o ministro da Educação Abraham Weintraub e suas dancinhas. Mas engana-se quem acha que o  SN tem ideologia ou partidarismo. Que  nada! Atacam à direita, à esquerda e ao centro.  Aquelas discurseiras da ex-presidenta Dilma nada mais são do que autênticas manifestações  de SN. E o que dizer da deputada gaúcha que esbarrou de propósito num colega da Câmara e saiu acusando ele de agressão? SN de raiz. Só  faltou esbravejar “mas o que é isso?” várias vezes.

A juíza que liberou os traficantes presos em flagrante com quase cinco toneladas de drogas é um exemplar incontestável de SN Jurídica. Algumas decisões dos egrégios magistrados das cortes superiores flertam com atos de SN, assim como o pessoal envolvido na Lava Jato que trocou mensagens sobre o que devem e o que não devem,  expondo operações e  decisões pelas redes sociais. Aliás, as redes sociais estão infestadas de SN. Pior é o pessoal da SN do crime que envolveu suas mulheres e filhos numa fracassada e trágica operação na cidade de Cristal para resgatar outro criminoso preso

Os SN invadiram com força agora os eventos culturais e o caso mais recente foi o desconvite à jornalista Miriam Leitão e seu marido, o sociólogo Sérgio Abranches,  para participarem da Feira do Livro de Jaraguá do Sul (SC).  A alegação é de que o casal corria riscos porque foram registradas mensagens agressivas nas redes sociais e uma petição  online com mais de 3,5 mil assinaturas de SN locais pedia que Miriam Leitão fosse cortada da programação por não concordarem com as posições dela. Vale lembrar que, anteriormente, ela  fora  vítima  agressões verbais num vôo doméstico por SN identificados com o lulismo, confirmando novamente que a classe não tem ideologia, ou tem todas. E aqui, novamente, surge  uma opinião SN presidencial, com direito a  editorial da Globo em defesa da jornalista.

Meu bom amigo  Gustavo  Machado, jornalista e  escritor de muita noção, postou um oportuno comentário nas redes sociais, a propósito do episódio ocorrido com a jornalista global e seu marido, creditando o ocorrido à uma “jequice tenebrosa”. Num apelo pela tolerância, elenca outros exemplos que ele entende como “jequice explicita”, principalmente na aldeia. (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2309986082607406&set=a.1377807539158603&type=3&theater).  Me alinho ao arguto companheiro quanto à  tolerância, mas me permito humildemente discordar quanto a comparação com atitudes jecas. O jequismo brasileiro, que teve sua origem no imortal personagem de Monteiro Lobato, o Jeca Tatu, é, na verdade, a representação de um sujeito ingênuo, o caipira simplório, símbolo do brasileiro que vive no campo. Aos que produziram os atos condenáveis descritos pelo Gustavo Machado não concedo o benefício da ingenuidade. Ao contrário, são conscientemente partidários  dos SN e, sim, o autor da postagem tem razão e assino embaixo na ideia de que o retrocesso de civilidade constatado poderá  nos levar à perda de mínimos freios sociais a ponto de nos  tornarmos um ambiente fértil para o surgimento de seitas. A dos Sem Noção já está bem ativa e cresce cada vez mais.


terça-feira, 16 de julho de 2019

Um quê a mais



* Publicado em 15/07/2019 na coletiva.net

Meus sensíveis ouvidos  doem quando ouço os repórteres  e apresentadores gaúchos sapecarem  nas perguntas aos entrevistados um  “como quê é” ou um “qual quê é”.  Acredito que seja um legado do paulistês, importado e  aculturado via programas de TV. Pior ainda quando vem com aquele “onde quê” ou o similar “aonde quê”,  usados para situações em  que o  advérbio que indica lugar não se aplica,  ainda mais com apêndice do quê.

Observo também outro vício oral (nada a ver com aquilo!)  dos nossos  mais dedicados repórteres e qualificados âncoras: um “aí” como muleta nos finais de frase, em textos  de improviso. Neste caso nem me dói tanto, embora considere que esse vício pode ser corrigido facilmente. Basta o profissional ficar atento ao que vai falar e se policiar quando for para o ar, recomendam os especialistas. 

Não me tomem por um intransigente corretor da linguagem. Sem formação para isso, admito que cometo meus pecados gramaticais com mais frequência do que gostaria. Faço, porém, um esforço danado para contrariar aquele amigo que me acusa, o maledicente, de  ter faltado às aulas  de virgulas e crases e, ainda, diz que está sendo generoso na avaliação.
Porém, isso que  chamo de vícios, de tanto serem repetidos,  acabam se incorporando à língua falada, empobrecendo o nosso já maltratado idioma.  A mídia reverbera, dá expressão e alcance aos tais vícios.

Um exemplo de pobreza vocabular que ganhou relevância na mídia eletrônica é o “por conta de”, que veio a  substituir o “a nível de”. Pelo menos não está errado, mas nem por isso precisa ser repetido à exaustão para explicar o acidente no trânsito, a falta d’agua, a sinaleira que não funciona, as mudanças no clima e outras tantas incidências do dia a dia.

Ao mesmo tempo “um conjunto de” (expressão que já esteve mais na moda) palavras não usuais foi incorporado às discurseiras das fontes nas mídias e fazem a festa dos que se consideram moderninhos.  É distopia pra cá, disruptivo pra lá, mais a concertação,  o ressignificar, o pertencimento, sem contar os importados coaching, digital influencer e o campeoníssimo spoiler. Coisas do Internetês. E, em qualquer circunstância, se faltar vocabulário, tacam-lhe um “fascista” que sempre   se encaixa.

Já o “empoderamento” feminino elevou ao podium um trio de respeito: feminicídio, misógino e sororidade! Reconheço que são palavras atraentes pela sonoridade, que nada tem a ver a sororidade aí de cima.    O trágico episódio de Brumadinho colocou na moda por um tempo o “descomissionamento” referente a barragens desativadas e não aos funcionários exonerados dos cargos  em comissão no serviço público. O termo inundou as matérias dos repórteres na cobertura do acidente, sem que explicassem do que se tratava.  Diferente dos debatedores esportivos que se esmeram, para sustentar suas teses, em dar vazão a chavões  do tipo “copo meio  cheio, meio vazio”, “medido pela régua...”, “fora da curva”, “a banca paga e recebe” e a maior obviedade de todas, a consagrada “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

O pior dos cenários é quando os que não sabem o que estão falando se entregam aos modismos, empregando fora de seu contexto palavras e expressões novas. Isso bem que mereceria outra crônica. Mas chega de aspas e quês. De minha parte, sou pela simplicidade e por tudo o que facilite a comunicação. É a minha “expertise”, com o perdão pela contradição.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Assim é se lhe parece

*Publicado nesta data em coletiva.net
-  Moro arrasou na Câmara!
- Moro foi desmascarado na Câmara!
- Bolsonaro foi ovacionado no Mineirão e no Maracanã!
- Bolsonaro foi vaiado no Mineirão e no Maracanã!
- O Maia está apoiando a reforma da Previdência
- O Nhonho mais atrapalha do que ajuda a reforma da Previdência.

- A Globo agora é comunista.

- A Globo apoiou o golpe.

- A Veja agora é comunista.

- A Veja sempre foi golpista.

- O Antagonista...

- O Intercept...

O povo saiu as ruas por Moro e a Lava Jato.

-  A manifestação foi um fracasso, tinha menos gente do que nos desfiles LGTB.

- A delação de Palocci envolvendo Lula e Dilma é muito grave.

- O Palocci é um traíra; o  cara é o Zé  Dirceu.

- O Léo Pinheiro, da OAS, confirmou as propinas para o Lula.

- O Léo Pinheiro está é com medo que não validem a delação dele.

Acordo Mercosul- União Europeia foi uma vitória do governo Bolsonaro.

- Bolsonaro era contra o Mercosul e o Acordo vai acabar com a nossa indústria.

- O corte de verbas  está inviabilizando as universidades.

-  Universidades com bandos de esquerdistas e desordeiros.

O Reinaldo Azevedo se vendeu pros lulopetistas.

- O Reinaldo Azevedo agora está do lado  certo.

- Não levem o Flávio Dutra a sério. A idade, sabe como é...

- Este Flávio Dutra é como vinho: quanto mais velho...

segunda-feira, 1 de julho de 2019

O Sistema


* Publicado nesta data em coletiva.net

Pouca gente se dá conta mas quem manda mesmo no universo é algo que conhecemos por O Sistema.  Para o bem e para o mal, de forma direta ou indireta, O Sistema rege nossas vidas.

Difícil estabelecer quando esse fenômeno começou, mas suspeito que a gênese esteja  associada à Revolução Industrial que deu vida às máquinas, evoluiu para a Informática e gerou o  que viríamos a conhecer como O Sistema.  Tem gente que confunde O Sistema com outro processo  que chamaríamos exatamente de O Processo.  Só que O Sistema é mais robusto, mais abrangente e mais impositivo que  O Processo,  um mero procedimento coadjuvante, ou um dos modos de comandar o mundo que o chefão utiliza.

Todo o dia nos deparamos com O Sistema, nos espreitando e se fazendo presente quando menos esperamos ou quando mais precisamos dele.

- Desculpe, senhor, mas O Sistema está com problemas.

Quantas vezes você já ouviu essa desculpa.  Mas não é nada disso.  O Sistema jamais apresentará problemas, ele apenas esta se fazendo e mostrando quem é que manda.

Também não acredite quando a moça informar que “O Sistema está fora do ar”.  Na verdade, O Sistema deixou todo o mundo na mão apenas para se valorizar  e voltar mais prestigiado do que nunca, iluminando o rosto das atendentes, que anunciam:  “Pessoal, O Sistema voltou, O Sistema voltou!”. Outras mentiras comuns são do tipo “Não trabalhamos com este sistema”  ou “Nosso sistema é outro” – O Sistema é único e não tem este ou aquele,  mas O.  Certos estão aqueles que já esclarecem: “Tudo vai depender dO Sistema”. 

Quer acarinhar O Sistema? Use expressões do tipo “Não sei o que está havendo com O Sistema hoje, ele está tão instável”.  É que O Sistema adora que as pessoas pensem que ele é imprevisível, quando na real é apenas manhoso.  E  muito vaidoso.  Vale também apelar para um pouco de coitadismo diante das pressões:  “Assim não há Sistema que aguente”.

O Sistema é, enfim, a materialização do Grande Irmão (Big Brother)  anunciado por George Orwell em  1984.  Presente em tudo, interferindo em tudo, mandando e desmandando no cotidiano das instituições e das pessoas.  E antes que me perguntem, nada a ver com aquela pouca vergonha do BBB da Globo.  O Sistema não é reality show, mas vida real.

*O Sistema é um dos textos de autoria deste colunista e que vai fazer parte da  coletânea DezMiolados 3, a ser  lançada no próximo sábado, dia 6, no Chalé da Praça 15, das 17 às 20 horas. Como o titulo indica, a obra reúne 10 parceiros, cada um com quatro textos, numa diversidade  de estilos e temas. A edição é da Farol 3. Vai nessa!