sexta-feira, 30 de março de 2018

A pauta da Sexta-feira Santa


Publicada originalmente em abril de 2012.
Repórter de plantão na Sexta-feira Santa enfrenta uma pauta obrigatória: a cobertura da encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, no Partenon, também conhecida como subida ou procissão do Morro da Cruz. O evento ocorre desde 1960, criado pelo padre Angelo Costa, já falecido, e cresce a cada ano, reunindo preferencialmente atores da comunidade. Lá no final da década de 80 do século passado este que vos fala era repórter de geral da Zero Hora, estava de plantão na Sexta-feira Santa e, claro, foi escalado para acompanhar a encenação.

Lembro bem que era um dia quente no final de março e para escapar das obviedades das coberturas tradicionais, decidi escolher dois ou três personagens interpretados por atores locais para, através deles, montar a minha matéria.  Um dos personagens era balconista de uma ferragem e intérprete do soldado romano que passava toda a encenação surrando, com uma espécie de relho, um dos ladrões, que na vida real era motorista de táxi.  É importante esclarecer que a encenação reproduz a Via Sacra  e suas 14 estações ou etapas do suplício de Cristo naquela sexta-feira, há mais de dois  mil anos. Só que alguns atores imprimem demasiado realismo a suas interpretações e era  caso do soldado romano que, volta e meia, pesava a mão contra o pobre e talvez bom ladrão. O infeliz olhava enfurecido para seu algoz, mas nada podia fazer durante a celebração religiosa, mesmo que o sacana legionário revelasse perversa satisfação em maltratar o companheiro de elenco.  Sei lá se não deu o troco após o evento. O soldadinho, um sujeito atarracado e malvado, bem que merecia.

O mais inusitado ainda estava para acontecer naquela encenação do século passado.  O gran finale seria a ascensão de Cristo, a partir da capelinha existente no platô do Morro da Cruz e onde ocorria o final da procissão.  O espetáculo no fim da tarde previa jogo de luzes, uma trilha épica e aqueles fumacinhas de shows,  que acompanhariam a subida do filho de Deus feito Homem aos céus. Um engenhoso sistema mecânico elevava o ator, com suas vestes brancas, enquanto ele recitava lições de religiosidade. O ator já era o ex-vereador Aldacir Oliboni, considerado a réplica moderna do Cristo, de acordo como mostram as ilustrações que conhecemos.

Pois bem, lá estava o Cristo- Oliboni exortando os fiéis quando, à esquerda do platô, começou uma movimentação frenética. “É ele, é ele, sim!”, repercutia a massa.  Vocês estão autorizados a pensar que era o próprio Cristo redivivo comparecendo ao seu velório, mas na verdade era quase isso, guardadas as proporções e o período histórico. Quem surgia triunfalmente era Sérgio Zambiasi no auge da sua popularidade. O Zamba foi cercado e festejado pela multidão, enquanto Cristo subia ao encontro do Pai,  lentamente e quase de forma incógnita. 

Oliboni ainda tentou atrair a atenção dos infiéis, gritando palavras de ordem pelo sistema de som:  “Cristo está aqui!  Cristo está aqui! Agora é o momento  glorioso da subida aos céus. Venham, venham, é aqui que está o Filho do Senhor! Demos glórias ao Senhor!”, apelava o bom Oliboni. Inúteis apelos.  A massa queria mesmo era confraternizar – e fazer pedidos – a quem mais tinha a oferecer naquele momento.  Entre os consolos espirituais que Oliboni inspirava e os materiais que Zambiasi poderia proporcionar  a escolha do povo pecou pelo pragmatismo, mesmo na Semana Santa.

Confesso que fiquei penalizado com a situação do Oliboni, supliciado durante toda a subida do morro e justo no momento da sua consagração como Cristo e ator o público o abandonava daquela forma, trocando-o por uma situação tão mundana.  De novo, mais de dois mil anos depois, a história se repetia e  o povo renegava Jesus Cristo. Insensível público, mas depois fiquei pensando que fatos como o que presenciei talvez expliquem porque Sérgio Zambiasi chegou a senador e Oliboni, mesmo sendo Cristo por um dia, só conseguiu assumir como deputado estadual, ainda assim vindo da suplência. Mas aí já é outra história, nada a ver com a Semana Santa.

 Boa Páscoa a todos. Que o coelhinho seja mais generoso que a massa que renegou Cristo-Oliboni.




quinta-feira, 29 de março de 2018

Novos templos do prazer


Encontro outro dileto amigo de antigos carnavais, o Getúlio, e antes mesmo de trocarmos um cumprimento afetuoso, ele dispara:

- Não concordo que o verdadeiro prazer esteja na mesa.

Getúlio referia-se a crônica Prazer Verdadeiro (https://viadutras.blogspot.com.br/2018/03/prazer-verdadeiro.html) onde relato a posição do nosso comum amigo Ernesto, segundo a qual a boa gastronomia acompanhada de vinhos qualificados substituíra, no caso dele com vantagem, os prazeres da cama.

- Olha, eu até não concordo com o Ernesto...- tentei explicar.

- É, mas está dando trânsito a essa bobagem.  O Ernesto não pode ser levado a sério, sempre foi meio fora da casinha.

Confesso que estranhei o uso da expressão “fora da casinha” pelo Getúlio, ele sempre tão formal, mesmo quando se exalta.  O estranhamento foi sucedido por uma declaração surpresa, naquele já inusitado encontro:

- A verdade verdadeira, meu caro,  é que os melhores prazeres hoje em dia se encontram na farmácia!

- Na farmácia?!!! – indaguei,  peremptório como um Tarso Genro, e com direito a três pontos de exclamação que pareciam se materializar na fala, tal foi o impacto que me causou a declaração do amigo.

- Sim, e é essa nova onda de prazer que justifica a profusão de farmácias espalhadas pela cidade, às vezes com mais de uma a cada quadra.  São os templos onde se acha a cura para os sofrimentos da alma e do corpo, - filosofou o Getúlio.

Nessa altura da conversa fui obrigado a refletir sobre a questão e lembrei de vários amigos que frequentam com assiduidade as farmácias em busca das panaceias que, acreditam, podem solucionar seus males.  Esses fiéis consumidores  compõem a irmandade conhecida como Os Hipocondríacos, que cresce assustadoramente  nos estressantes tempos atuais.

Um desses devotos, também amigo de longa data, é conhecido por perguntar às atendentes na farmácia próxima da sua casa: “Chegou alguma novidade?”. E em seguida começa a enumerar seus males, reais ou imaginários, e insiste nas perguntas:  “O que temos de novo para hipertireoidismo? E para a insônia? ”  Como é cliente vip, recebe tratamento atencioso e personalizado das mocinhas da farmácia. É tão bem informado sobre os medicamentos que tornou-se consultor de uma confraria de hipocondríacos e só não prescreve receitas porque seria uma ilegalidade, mas fala com autoridade de especialista sobre os princípios ativos de cada droga, dosagem, efeitos colaterais, contra indicações e tudo o que consta nas bulas dos medicamentos.  Quando insinuam que ele é viciado em remédios contesta com veemência:  “Tomo os mesmos remédios há mais de 30 anos e nunca me viciei...”

Getúlio interrompeu minhas ruminações, intervindo com um novo argumento para reforçar sua posição:

- Tenho questionado companheiros da nossa faixa etária e todos eles usam pelo menos três remédios, outros quatro, outros cinco e por aí vai. É remédio para a hipertensão, colesterol...-  e passa a enumerar a farmacopeia disponível para os de 50 ou mais. “ Isso sem contar aquela pílula azul, capaz de proporcionar grandes e duradouros prazeres”, acrescenta.

Pois é, sou obrigado a concordar com a quantidade de remédios que nos receitam depois de certa idade. Também sou vitima desse processo, que me  consome uma boa grana todos os meses, mas dai a sentir prazer em frequentar farmácias não é o meu caso, ao contrário.  Já para o Getúlio é como se fosse uma ida ao supermercado, como deixou claro na despedida:

-Agora, caríssimo,  me dá licença que preciso fazer meu ranchinho de remédios para esta semana.

Fez uma  pausa e completou faceiro:

- O que mais precisa um ser humano para ser feliz?

Acho que  está na hora de selecionar melhor minhas amizades.


domingo, 25 de março de 2018

Prazer verdadeiro


Os encontros com Ernesto sempre rendem receitas de bons pratos e ótimas indicações de vinhos. Só que não entendia porque o dileto amigo de tantas confrarias insistia em me brindar com essas informações, já que ele sabia que sequer sei fritar um ovo,  o que dirá produzir os pratos elaborados que ele descreve. Também já cansara de explicar que meus conhecimentos enológicos se resumiam a distinguir os brancos dos tintos, os espumantes dos frisantes e que passo vergonha se tiver que escolher entre um Malbec e um Cabernet, ou entre um Pinot Noir e um Merlot.  É bem verdade que não reconheço os chamados vinhos finos, mas meu paladar está treinado para rejeitar os vinhos de baixa qualidade, da mesma forma que um bolsonarista rejeita um lulista e vice versa. Por aí vocês tem uma ideia da dramaticidade da questão nos encontros com o Ernesto.

De tudo isso era sabedor o meu amigo, mas ele insistia em me torturar gastronômica e etilicamente.   "Olha recebi um Chardonnay chileno , safra 2015 que é uma beleza. Vai bem com  frango assado ao molho de limão e ervas, ou anéis  de lula na manteiga de limão siciliano”,  ele  recitava, sem uma pausa e parecendo salivar enquanto definia a harmonização.  Ou então,  “ dia desses preparei pappardelle com gorgonzola, nozes e um belo filé. Advinha com que vinho harmonizei esse jantar dos  deuses?”  Diante da minha cara de idiota ele completou:  “Com um Reserva Carignan, safra 2014, um vinho exuberante e complexo. Magnifique!”, exclamou num francês sem sotaque, embora a origem  do vinho fosse  chilena. Na verdade, ele parecia ter na cabeça um manual de harmonização,  com todos os vinhos de boas cepas e suas melhores companhias à  mesa.

Cheguei  a pensar que o Ernesto  agia  assim para me humilhar, em represália a alguma forma de bullyng que eu teria cometido ou consentido na nossa adolescência.  Por isso, depois de uma dessas sessões torturantes, decidi pegar pesado com ele, questionando seu modo de agir.  Foi então que, de forma quase inaudível, mas não envergonhada, Ernesto confessou a nova fase da sua vida:

-  Perdi o interesse  “naquilo”.  Dá muito trabalho, exige muita conversa antes e muita energia depois.  E ainda precisa tomar banho no fim, - justificou, enquanto mudava de tom:

- O verdadeiro prazer está na mesa! Bons pratos, acompanhados de vinhos de qualidade.  Não tem erro. E diferente “daquilo”, dá pra variar à vontade, sem  culpa, não se corre o risco de traições, podemos dividir os momentos prazerosos com parceiros masculinos e femininos sem provocar maledicências, as preliminares se resumem aos acepipes das  entradinhas  e a gente consegue repetir  o prazer mais de uma  vez ao dia, sem precisar de aditivo químico, a não ser o próprio vinho. É tudo  de bom! - acrescentou cheio de entusiasmo.

Quedei-me, por instantes, num silencio obsequioso depois de  tais  revelações, porque, afinal, passei a entender a motivação do Ernesto nos nossos encontros.  De certa forma compadeci-me da situação do amigo,  mas só me ocorreu uma espécie de  solidariedade:  anunciei que, por coincidência, estava cogitando participar de um desses cursos de vinho, além de me matricular numa escola de gastronomia. A reação do meu amigo foi de exultante aprovação:

- Maravilha. Vais conhecer o prazer verdadeiro, que não está na cama, mas na mesa.
Agora nossos encontros ganharam uma pauta adicional: a cobrança dele de quando vou me dedicar aos dois cursos. Ou seja, a  tortura foi ampliada, mas eu resisto.

terça-feira, 6 de março de 2018

Desapego, a polêmica




Foi só tratar de desapego que o pessoal se atiçou, propondo que o tema enveredasse para o desapego amoroso, digamos assim.  Fui subsidiado por variadas receitas para  enfrentar esse que parece ser um mal da modernidade nas relações interpessoais. Surgiram teses as mais absurdas e muitos relatos de situações ocorridas, algumas francamente escabrosas, que omitirei.  Mais adiante, relato um episódio,   que da categoria papai-mamãe, sem obscenidades.

Dos subsídios que recebi, inúmeras manifestações culpam as redes sociais pelo distanciamento entre as pessoas, o que levaria ao descarte da interação pessoal e daí ao desapego  seria um  passo. Não faltaram os que atribuíram à Rede Globo boa parcela das ocorrências porque  seus conteúdos contribuem para a dissolução das famílias e dos bons costumes. Claro que coxinhas e petralhas se acusaram mutuamente, os  primeiros afirmando que desapego é uma atitude tipicamente de comunistas (“Olha o que está acontecendo com a Venezuela!”), enquanto os  outros  garantem que desapegar é coisa  de fascista (“E fora Temer”, acrescentam).

Como não tenho  mais paciência  para esses embates, recorro a história ocorrida com dileto amigo deste desencaminhante blogueiro. Sucede que ele e a namorada tiveram uma briga feia e a moça,  decidida e um tanto ressentida com o rompimento provocado pelo parceiro, resolveu devolver os mimos que havia recebido durante os tempos apaixonados da relação. O nosso amigo relata que não foi a atitude dela que o magoou profundamente, mas a embalagem que continha as mimosuras  -  cartões, bilhetes amorosos, livros, Cds românticos, brincos e colares e até uma calcinha preta, fetiche dele.

- Era uma caixa de papelão, provavelmente usada para  embalar desinfetantes ou coisa que o valha. Isso é coisa que se faça com uma pessoa que havia representado muito na vida dela? Ainda por cima mandou um bilhete escrito ‘desapeguei-me’, vê se pode! - lamuriava-se.

Mas a fase lamurienta não demorou muito e ele partiu para o contra-ataque. No dia seguinte esperou anoitecer e, de campana na rua onde a ex morava num desses sobrados geminados, quando ninguém mais circulava pelas imediações, aproximou-se da casa e jogou a caixa de papelão no pátio da frente. E fugou com o coração acelerado, mas exultante com o que considerava uma façanha, ainda mais que dentro da caixa incluíra um recado; “desapeguei-me do teu desapego”.

Mal havia retornado a sua casa quando o celular tocou. Era ela. Furiosa.

- Como tu invade minha privacidade e joga coisas no meu pátio?!

Aquele “coisas” doeu no ouvido e no coração dele.  As mimosuras,  provas de amor tão carinhosamente ofertadas, agora eram reduzidas a “coisas”.  Mas ele não deixou transparecer a mágoa crescente, somatório de “coisas” mais o acondicionamento numa caixa de papelão ordinário. Seguiu-se uma inicialmente furiosa discussão, que se transformou em DR menos colérica e, por fim, na marcação de um encontro para acerto de contas no dia seguinte.

No encontro, aconteceu o que  ambos esperavam, a reconciliação. Voltaram a compartilhar cama e mesas, afinal, uma  relação tão intensa, capaz de gerar tanta energia, não seria desfeita por um desapego qualquer. Sou testemunha de que até  hoje o casal resiste impávido a todas as crises e, cá entre nós, firmei convicção de que o amálgama da parceria foi aquela  sessão de desapego, de duas vias,  mesmo embalada por uma reles caixa de papelão,


segunda-feira, 5 de março de 2018

Desapego


Nada é mais angustiante do que o desapego, seja de bens materiais, seja de pessoas.  Falo com conhecimento de causa, pois pressionado por instâncias familiares me vi na obrigação de me desfazer de algumas de minhas preciosidades, frutos de impulsos consumistas:  camisas azuis e livros empoeirados.  É bem verdade que numa verificação superficial contabilizei mais de 50 camisas, nem todas azuis, esclareço,  sem contar as polos, boa parte delas azuis, além das peças que foram subtraídas pelo meu filho Rafael.

Com dor no coração, quase derramando uma lágrima furtiva, comecei a sessão desapego, utilizando dois critérios que me pareceram justos diante de tão querido acervo:  descartar camisas com mangas e golas puídas e aquelas não usadas há mais de um ano.  Entretanto, se eu levasse ao pé da letra tais critérios, sobrariam apenas cinco ou seis camisas, que se revezam no meu dia a dia e permitem   que use as detestáveis gravatas. Me bateu aquela angústia, um agudo sentimento de perda, que  decidi não ser tão rigoroso.  E descartei menos do que devia.

Igualmente fui comedido para abrir espaço na estante de livros. Fiz doação ao acervo  que a Tânia Carvalho está organizando na Casa de Apoio Madre  Ana, da  Santa Casa, outro  tanto na Feira do Livro  para os presidiários, mais alguma coisa para a biblioteca bem organizada de uma escola pública do Menino Deus que reuniu autores durante uma gincana,  e distribuí exemplares  por locais públicos atendendo o chamado de um desses dias de Doar Livros. Em compensação, criei mais um espaço para livros, adquiridos  recentemente, junto ao Memorial Flávio Dutra, um armário onde exponho algumas peças e  equipamentos antigos, mas de grande valor afetivo, como uma máquina de escrever portátil e uma filmadora Super 8.

Quando vejo os livros ordeiramente colocados, tanto na estante principal como no Memorial, me questiono se terei tempo de ler todas as obras que esperam na fila por minha decisão de devorá-las, como o fazia antes de me dedicar mais as redes sociais do que a leitura. Mesmo assim reluto  em descartar o que não tem merecido minha atenção. Já tratei neste ViaDutra do tema do  desapego e lembro ter escrito que “fisicamente o espaço foi recuperado, mas há um outro espaço, o das lembranças, que se vai  junto com o descartável.  Se o que agora foi liberado resistiu tanto tempo junto da gente é porque certamente evocava boas lembranças. (...) Na verdade, é preciso uma boa dose de coragem para o desapego, que é renúncia e despojamento, mas que não deixa de ser também uma forma de traição ao abrir mão do que vale a pena recordar, substituindo por novos focos de atenção.” Por isso, apelo para que não me encarem como um acumulador,  sou apenas um sentimental, o que vale, sobretudo, para o desapego de pessoas, mas aí é conversa para outro momento.

Talvez tenha que dar razão a quem escreveu que “ afinal, se coisas boas se vão é para que coisas melhores possam vir. Esqueça o passado, desapego é o segredo”. De repente sou tentado a votar  com o relator, que seria o grande Fernando Pessoa. E se não for, assinarei embaixo assim mesmo.