terça-feira, 26 de abril de 2011

No reino da fantasia


                                              Te prepara Maria Clara


A principal função do pai na primeira infância dos seus filhos não é a de trocar fraldas ou dar banho nos pequenos, mas o de contador de histórias. É assim que se mantém a tradição oral dos clássicos das histórias infantis, que mexem com a fantasia da criançada e transmitem valores, lições e mesmo os cuidados que os infantes precisam aprender para enfrentar o mundo lá fora. O que são as fábulas de Esopo, base de muitas histórias da Carochinha, senão lições de solidariedade, de desapego, de perseverança, de superação, de amor? E os contos dos irmãos Griimm, puro encantamento para as crianças, sobrevivendo aos séculos e a todas as gerações?

Faço essas reflexões enquanto percebo uma tentativa de transformar o casamento da realeza inglesa em um conto de fadas moderno, com quase todos os ingredientes do gênero: uma história de amor envolvendo um príncipe que encontra sua princesa para, juntos, viverem felizes para sempre. Será? Falta um vilão nesta história para ela ficar completa. A luta permanente do bem contra o mal, com a vitória final do bem, é componente indispensável num conto de fadas que se preze. A bruxa – ou rainha Má? – seria a própria rainha Elizabeth, como no casamento de Charles com Diana – também uma tentativa- frustrada - de construir um conto de fadas? Ou a sogra, que masca chicletes em cerimônias oficiais, um escândalo diante dos rígidos protocolos britânicos? Ou a madrasta do jovem príncipe? Madrastas sempre são estigmatizadas e aquela senhora que assumiu o lugar da bela Diana bem que merecia o papel de vilã.

Na verdade, eu queria mesmo era falar do papel do pai como contador de histórias e acabei me desviando. Não resisto, tenho que fazer uma tese...

Retomando o fio da meada, ou da história, confesso que era um pai um tanto relapso nos cuidados exigidos para as crianças na tenra idade. Para compensar, fui um dedicado contador de histórias, seguindo a tradição do meu pai, que eletrizava a escadinha de filhos com suas narrativas. Não herdei o mesmo talento, mas me esforcei bastante para que a criançada aqui de casa vivesse suas fantasias. A Flávia, por exemplo, tinha particular predileção pela história da Rapunzel, talvez porque se identificasse com a mocinha presa na torre, não pelo confinamento, mas pela loirice dos cabelos. O Rafael, hoje um marmanjo em vias de ser pai, se escondia embaixo das cobertas cada vez que o Lobo Mau entrava cena na história do Chapeuzinho Vermelho. E a Mariana, sempre muito criativa, obrigou-me a transformar a história dos Três Porquinhos em história dos Cinco Porquinhos - tive que inventar uma casa de papelão e outra de jornal para o malvado do Lobo arrasar com um sopro. Em certas ocasiões invertiam-se os papéis e eu passava a ser o ouvinte das histórias da Mariana, que envolviam os irmãos Gleds e Bleds – que eram gêmeos – e o caçula, como ela, o Gledson, num cenário mágico chamado Casa das Estrelas. Outro dia conto mais sobre a Casa e suas histórias.

Contar histórias para os filhos era um momento prazeroso, mas cansava às vezes, especialmente quando ouvia o pedido fatídico: “Conta de novo, pai”. Criança adora historinha repetida e admito que , com freqüência, tentava burlar a atenção da gurizada, abreviando a contação ou pulando páginas dos livretos. Em vão. Logo vinha o recado dos espertinhos: “Pai, tu pulou aquela parte...”. E lá se ia um pai cansado repetir tudo de novo, até que a criança se entregasse ao sono. Outras vezes inventava histórias sem pé nem cabeça e era execrado: “Essa história é muito boba. Não vale, conta outra”. Nessas ocasiões, ansiava para que eles se alfabetizassem logo para assumirem, eles mesmos, a construção das fantasias que povoariam suas mentes infantis.

Agora me preparo para uma nova temporada como contador de histórias. E me preparo também para enfrentar uma ouvinte exigente e muito atenta. Pela atenção que presta aos vídeos do Cocoricó, aos clipes de musicas infantis e ao livrinho dos personagens Backyardigans (Pablo, Tyrone, Tasha e outros), pressinto que vou ter muito trabalho com a Maria Clara. Bendito trabalho! Sou mais eu e minha experiência acumulada com a mãe, o tio e a tia da Maria Clara do que os tais vídeos e livrinhos. Te prepara, Maria Clara: “Era uma vez...”

domingo, 24 de abril de 2011

Modestas, mas sinceras, sugestões aos legisladores

Meu bom e talentoso amigo David Coimbra aproveitou o gancho da lei do deputado Carrion proibindo o uso de estrangeirismos e publicou um texto irônico e divertido na ZH de sexta, 22/04. Em “Idéias para ganhar seu voto”, David propõe dez projetos proibitivos, que ele entende serem de interesse da coletividade. Entre os projetos, a proibição de bares e restaurantes servirem chope ou cerveja quente, que apoio integralmente, como também apoio e assino embaixo para o impedimento das mulheres não usarem," nunca mais!, calças sem fundilhos, as famigeradas (asc!) saruel”.

Com uma ou outra emenda firmaria junto com o David todas as proposições e, modestamente, me arrisco até mesmo a sugerir algumas vedações mais, a bem da moral e dos bons costumes e, por que não, em prol da preservação da civilização cristã-ocidental, tão fragilizada nesses tempos modernos.

Pediria aos nossos legisladores, por exemplo, a proibição dos rapazes desfilarem em bares, restaurantes e shoppings, com camisas de futebol na companhia de suas lindas parceiras, todas muito fashions. A pena seria perder a parceira para o primeiro chinelão que aparecesse. Chinelagem por chinelagem...

Ao deputado Carrion sugeriria estender a abrangência de sua lei de forma a proibir os inícios de conversas com “veja bem”, “olha só” e “então”. Tudo pelo fim da enrolação, uma boa causa, sem dúvida. Pena: assistir a todas as sessões plenárias da Assembléia Legislativa, com o atenuante de acompanhar pela TV após 15 dias de correição.

Vou procurar um legislador corajoso para propor uma severa intervenção no Facebook, retomando a campanha contra os “hahahaha”, os “rsrsrsrsrs”, os “kkkkkkk” na rede, com um artigo proibindo também os “lindoooo”, os “ameeeiii”, os “mazzzaaa” que infestam os diálogos e empobrecem o vocabulário. Pena: assistir toda a série de programas Soletrando até aprender a escrever corretamente.

Ainda em relação ao comportamento no FB, daria um jeito de proibirem o envio de corações patrióticos ou amorosos, das boas vibrações não solicitadas e daquelas perguntas idiotas sobre a intimidade da gente. Pena para quem desrespeitar a proibição: um mês de bloqueio na rede e, na reincidência, degredo para a Líbia ou a Costa do Marfim.

Por fim, voltaria a propor a Lei do Desarmamento dos Espíritos para fazer frente às palavras e gestos belicosos, que podem não ser tão letais como as armas verdadeiras, mas ferem igualmente e também deixam cicatrizes. Os infratores são normalmente reincidentes e para eles só existe uma pena: a indiferença.

Aceitam-se adesões às nobres causas.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O rei das gafes

Os franceses usam o termo gaffeur para designar o sujeito trapalhão, inconveniente, desastrado, que comete gafes. Não é para me exibir, mas acho que me enquadro na categoria, tantas são as mancadas que tenho perpretado. Um pouco por distração, mas muito mais pela compulsão para ser gentil, elogioso e ter sempre uma tirada bem humorada tem me colocado em cada saia justa que vou te contar.


Certa vez, visitando um médico, pai de uma colega da minha filha, notei que ele mancava e, como estava de abrigo esportivo e contava façanhas como atleta amador, perguntei se o repuxe da perna era resultado do futebolzinho entre amigos. “ Não, tive poliomielite quando pequeno”, foi a resposta. Toing!

Outra vez, um companheiro de trabalho fez questão de mostrar seu filhinho pequeno, de colo, e eu maliciosamente insinuei que o garotinho era parecidíssimo com o chefe do tal companheiro. O sujeito fechou a cara e nunca mais falou comigo. Com toda a razão: soube depois que a mulher dele teria tido um caso com o chefe. Tóing!!

Já dei taponas nas costas de mulheres de cabelo curto pensando que fosse um conhecido, perguntei por falecidos que jurava ter encontrado recentemente, errei de igreja em casamentos em que era padrinho, troquei nomes de pessoas e esqueci outros nos momentos em que não poderia e por aí vai. Algumas situações foram tão escabrosas que fico ruborizado só de lembrar.

Mas não estou sozinho nesta parada. Um amigo jornalista tinha como colega de aula uma gêmea de outra moça, ambas consideradas como feias de doer. Sucede com o nosso amigo acabou conhecendo a outra irmã e, todo gentil e algo distraído no manejo dos advérbios, comentou mais tarde com a colega: “Conheci ontem tua irmã. Ela é horrivelmente parecida contigo”.

Essa outra é de uma colega, solidária, mas muito expansiva. Ao tomar conhecimento da morte de um amigo de anos, convocou uma amiga comum e se tocou para o cemitério. Lá chegando, protegida por enormes óculos escuros, entrou na primeira capela que encontrou, saudou pesarosa dois ou três familiares do morto e foi prestar suas homenagens junto ao esquife. Agarrou a mão gelada do falecido e começou a falar como se conversasse com o corpo inanimado: “ Augusto, por que nos abandonastes tão cedo? Isso é coisa que se faça com os amigos, Augustinho”, enquanto alisava a mão do morto e fungava discretamente.

Na entrada da capela, os parentes assistiam à cena, estaqueados. A acompanhante achou que havia algo de estranho no falecido: “ Amiga, o Augusto está tão diferente. Essa barba...”, sussurou.

Mas a outra não lhe dava atenção e continuava seu diálogo unilateral com o cadáver. “Augusto, querido, o que essa doença fez contigo! Puxa, tanto tempo sem te ver e agora te encontro assim, tão diferente, tão maltratado, meu querido Augusto.”

Os parentes começaram a se aproximar do cenário, já desconfiadíssimos, enquanto a acompanhante insistia: “ Amiga, o Augusto não usava barba. Acho que esse daí não é ele”.

Foi aí que caiu a ficha da amiga, que lentamente recolocou a mão do falecido junto ao corpo, naquela posição de descanso a que tem direito os chamados para o sono eterno.

Antes que os familiares levassem adiante as suspeitas de que se tratava de algum caso extra-conjugal do falecido, a dupla de moças saiu porta afora, a procura do velório do verdadeiro Augusto: “ Desculpe, foi engano”, ainda conseguiram justificar aos atônitos parentes.

Já errei de igreja em casamento, mas de velório jamais. As duas gaffeurs me superaram!

sábado, 16 de abril de 2011

Nostalgia do futuro

Um estranho sentimento está se apossando de mim. Não é saudade do passado, mas uma nostalgia do futuro. Fico a imaginar o que ainda posso realizar daqui pra frente, o que de novo vou experimentar, o que me reserva de surpresas a roda do destino, eu que já palmilhei tantos caminhos, já sofri muitos reveses e celebrei tantas conquistas.


Por mais que eu maneje os cordéis e tente direcionar o rumo, tenho consciência de que o comando desse processo não está nas minhas mãos e o futuro só me pertence como efeito de uma causa que provavelmente não criei. O bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo pode ter mais poder sobre o meu e o seu futuro do que todos os esforços que fizermos para aplainar o terreno do porvir. O “efeito borboleta” é real e não apenas roteiro de filme.

O que me tortura é o que eu não farei, os projetos que não realizarei, os livros que não lerei, os filmes que não verei, as viagens que não curtirei, os afetos que não trocarei, todos os sonhos que ainda acalento e que não tornarei realidade. Sinto imensa saudade do que ficarei devendo na minha biografia, grandes ou pequenos eventos que poderiam mudar o rumo desta quadra da minha existência, tão sujeita ao déjá vu.

O tempo é cruel conspirador contra os meus planos e mesmo que todos os deuses da terceira idade se unam a meu favor vai ficar um vazio e continuarei devedor de mim mesmo. É uma tremenda injustiça, mas pensando bem, pelo menos terei uma boa desculpa para as coisas que não farei.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Dia de ganhar pijamas ou chinelos*

* Essa bobagem do Dia do Beijo me fez resgatar um texto publicado em 6/8/2010


Confesso que não tenho muito saco para essas datas comemorativas, tipo Dia das Mães, dos Pais e Dia da Criança. A partir do momento em que se tornaram mais um evento comercial do que um tributo aos homenageados, tais comemorações perderam sua dimensão afetiva. Nada contra o comércio, que precisa fazer a roda da economia andar, mas não abro mão de decidir se participo ou não da festa e com quê entusiasmo será minha adesão.

Até porque novas datas comemorativas estão surgindo, todas com grande apelo emocional e sendo estimuladas pelo setor produtivo. O Dia dos Namorados já está consolidado, fazendo a alegria das floriculturas, dos restaurantes e dos motéis. O Dia da Mulher vai na mesma direção e já há quem advogue a criação do Dia do Homem, uma vez que outras opções já estão contempladas no Dia do Orgulho Gay.

Há um forte movimento para implantar o Dia do Amigo que, por enquanto, se resume ao envio de mensagens piegas entre aqueles que se julgam amigos do peito. Está pintando com força o Dia dos Avós e logo a meritória homenagem vai se transformar em obrigação de comprar presentes para os vovozinhos. Menos mal que posso ser beneficiário dessa obrigação, se bem que ainda vai levar algum tempo até que Maria Clara tenha discernimento para presentear seus avós queridos.

É preciso tomar cuidado com os exageros. Conheço o caso de marmanjos que até hoje recebem presentes pelo Dia da Criança. Observo também um esforço, inclusive de escolas, para introduzir entre nós o Halloween, o Dia das Bruxas, uma tradição anglo-saxonica que nada tem a ver com a nossa cultura. Só vou aderir se puder mandar um bouquet de espinhos para algumas bruxas que me atormentam no dia a dia.

E tem ainda essa forçação de barra para instituir o Dia da Sogra. Com todo o respeito à categoria, que nos legou nossas amadas parceiras, a figura da sogra ainda é estigmatizada e temo que, ao invés de homenagens, as respeitáveis senhoras sejam objeto de agravos de parte de genros e noras ingratos. Isso sem contar que podem surgir idéias como a criação do Dia dos Ex que pode englobar um naipe diversificado de figuras: ex-marido, ex-mulher, ex-sogra, ex-patrão, ex-amigo.

Antes que vire um ex-qualquer e para que não fique a impressão de que sou um rabugento em tempo integral, admito que estou ansioso pelo presente que vou ganhar dos meus filhinhos. A dúvida é: chinelo ou pijama?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Roteiro previsível da tragédia

A cobertura da mídia para as grandes tragédias, como a desse lamentável episódio do Rio, segue um roteiro absolutamente previsível. Depois do primeiro impacto, repleto de informações desencontradas, a mídia elege um herói, no caso do Rio o sargento da PM que enfrentou o assassino das crianças. Ao mesmo tempo, as testemunhas próximas do ocorrido são chamadas a dar seu depoimento, entre lágrimas. Logo entram em cena os parentes das vítimas, todos em desespero. E surgem os atores secundários: a vizinha que assistiu tudo à distância, o popular que passava e acudiu feridos, o voluntário que mais atrapalha do que ajuda, a vítima potencial que escapou porque, por força do destino, não estava na hora devida no lugar errado. Todos querem participar, um tanto por genuína solidariedade e outro tanto por compulsão de estar no centro ou muito próximo do acontecimento da hora. Por fim, aparecem as autoridades civis, contristadas na sua solidariedade, e as policiais, explicando suas ações e roubando a cena dos que realmente enfrentaram o perigo.

Repórteres e apresentadores assumem feições graves, os gestos são estudados e as palavras medidas, uma a uma, para não conflitar com o clima provocado pelo ocorrido.

Na segunda fase – o termo jornalístico correto é suíte - normalmente no dia seguinte, a mídia trabalha em duas direções: a busca dos culpados e uma reflexão mais aprofundada sobre a tragédia. Na busca dos culpados, o poder público sempre é o primeiro a ser apontado, ou porque foi omisso ou porque não fez o suficiente para evitar a tragédia. Para a reflexão das causas e efeitos da tragédia são escalados os chamados “especialistas”, recrutados entre as mais altas autoridades afinadas com o tema. É quando surgem as mais extravagantes e inviáveis propostas para o enfrentamento do que ocasionou a tragédia.

Na terceira etapa surgem fatos inéditos – “informações exclusivas”, “imagens exclusivas” - sobre o ocorrido, fecha-se o cerco sobre os culpados ou suspeitos, famílias são reunidas para chorar suas perdas, as autoridades prometem soluções para breve. É o momento também em que brilham delegados, promotores e advogados, defendendo teses e antecipando julgamentos. Reconstituições são feitas, abordagens são requentadas e o caso começa a perder fôlego.

E de repente desaparece da pauta, substituído por outra tragédia ou pelo mais novo escândalo da República, para ressurgir como memória quando outro acontecimento análogo ganhar a primazia dos noticiários.

Com pequenas diferenças o roteiro é sempre o mesmo.

Antes que me acusem de insensibilidade diante de fatos dantescos peço uma reflexão sobre a verdadeira dimensão dessas tragédias, a comoção que elas provocam no primeiro momento, a manipulação emocional dos envolvidos e o tratamento inconseqüente que tais fatos recebem, com as exceções de praxe.

Não sei quanto a vocês, mas a mim incomoda – e muito – a espetacularização da tragédia e vou expressar isso com todas as letras e sempre entender necessário.

domingo, 10 de abril de 2011

A mulher de óculos escuros - final

Recomenda-se ler a primeira parte, publicada em 08/04/2010.

Não se conhecem os desdobramentos futuros do caso, mas o fato é que a moça se acalmou e se retirou do ambiente fúnebre, com o Junior a tiracolo. Assim a família e os amigos puderem prantear seu ente querido sem outras interferências. A família, na verdade, estava vexada com o incidente. Todos sabiam que o falecido não era o que se poderia classificar de cidadão e chefe de família exemplar, mas daí a constituir outro lar no paralelo passava das medidas. Certamente o ocorrido já estava na boca do povo e seria motivo de muitas conversas entre as comadres e nas mesas de bares, uma situação insuportável. Já os amigos, testemunhas ou companheiros de algumas farras do falecido, não estavam nem aí para o constrangimento da família. Nessa hora é que a gente sabe quem são os verdadeiros amigos, pensou Sivaldo, com uma ponta de amargura.

Todas essas preocupações não saiam da cabeça do bom Sivaldo cada vez que imaginava como seria sua passagem para outra dimensão. Tinha claro que a família seria a principal vítima se houvesse algum escândalo como o ocorrido com o parente. Coitados, teriam que administrar um legado inconveniente e indesejado. Foi então que começou a fazer uma retrospectiva das vezes em que pulou a cerca, tentando identificar potenciais fatores e pessoas de risco.

Ele tinha certeza de que não apareceria nenhuma ex com filho no colo, a não ser que fosse armação, que um simples exame de DNA desmentiria, embora não evitasse o vexame e o diz-que-diz no velório. “Afasta-te de mim, pensamento diabólico”, dialogava internamente. Sivaldo sabia que uma ex, no oficial ou no paralelo, era encrenca para a vida toda, inclusive na hora da passagem para a vida eterna.

Ao passar a limpo a vida pregressa, registrou poucas transgressões, mas algumas foram bem escabrosas e outras bizarras. Ele lembrava bem o caso com uma contorcionista de um circo mambembe, que conhecera num boteco após a matiné. A moça atuava também como ‘partner’ do domador das feras e nas horas vagas fazia contorcionismos na cama e ronronava como um felino. O caso durara exatos 15 dias, o tempo de permanência do circo na cidade, mas suficiente para encontros diários num hotelzinho barato perto de onde as lonas circenses estavam instaladas. Não, pensou, essa não vai dar trabalho, o circo já deve ter sido desfeito e a moça provavelmente está exercitando seu sotaque castelhano, com viés catarinense, em outras plagas.

Depois veio o caso com aquela ex-freira, carente de afeto e de sexo, que decidiu descontar com ele os atrasados. O caso não prosperou por muito tempo porque a moça, ainda apegada aos preceitos religiosos, recusou-se a atender um fetiche dele para comparecer a um encontro vestida com o hábito de freira. Achava, entretanto, que a ex-freira, até pela sua formação, não se prestaria a um escândalo, mesmo porque agora dividia seus lençóis, devidamente casada, com um ex-seminarista.

Teve ainda aquele caso com aquela garçonete que precisava tomar um longo banho após a lida no restaurante e antes da lida sexual para minimizar o cheiro de fritura impregnado no corpo dela. Mesmo assim, às vezes ele achava que estava transando com uma batata frita ou um filé à parmegiana. Mais tarde, descobriu que ela dividia seus favores sexuais também com o marido de uma amiga, conforme confissão do próprio, o que conduzia a situação a um dilema: quem era o outro da outra? A garçonete talvez viesse a incomodar, mas ele torcia para que o marido da amiga fosse importunado em seu velório antes do que ele.

Registrava, com um misto de saudade e preocupação, o caso com aquela socialite casada, que lhe dava boa vida e todos os prazeres sexuais imagináveis. Foi o único caso com mulher casada e o escabroso da história é que o marido sabia e aparentemente não se importava com o relacionamento extraconjugal da mulher, tanto assim que os encontros eram na bela cobertura do casal. O caso terminou no dia em que o marido invadiu o quarto onde transavam e quis participar da brincadeira, insinuando-se mais para o amante do que para a mulher. Aí já era muita devassidão e Sivaldo tinha valores a preservar. A socialite, com sua coleção de óculos escuros de todas as grifes, era um perigo em potencial.

Começou a pensar em casos mais recentes e as preocupações aumentaram. Entre outros, houve aquele envolvimento com uma amiga mais moça, que ele lutou muito para conquistar e depois viver uma relação de mais de três anos. Foi um relacionamento intenso e tumultuado. Intenso porque se permitiam tudo e tumultuado porque eram muito diferentes em quase tudo e só convergiam mesmo na hora do sexo. O rompimento fora traumático e isso deveria acender o alerta, mas conhecia bem o estilo da moça e ficava mais tranqüilo. Era uma dissimulada e se comparecesse ao enterro o faria com muita discrição e um belo óculos escuros, só para ter certeza de que estava mesmo morto.

Puxa, tão poucos casos e tanta angústia. Mas só de pensar no assunto, começou a sentir fortes dores no peito. “Será que chegou a minha hora?”, apavorou-se. “Vou ter que ligar para os meus irmãos para alertar sobre a mulher de óculos escuros...”

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A mulher de óculos escuros - parte 1

*Publicado originalmente em 19/10/2009


“ Não custa alertar: é ficção.”


Sivaldo, funcionário público, meia idade, era muito preocupado com o que escreveriam no seu obituário, se é que mereceria algumas linhas destacando sua trajetória pessoal e profissional. Sabia que não haveria muito a dizer, além dos registros obrigatórios, sua preferência clubística, onde trabalhou, um ou outro projeto em que esteve envolvido, talvez a opinião generosa de algum ex-colega ou familiar. Não, certamente ele não mudara o mundo nem influenciara pessoas.

O que Sivaldo temia, na verdade, era a possibilidade de eventos com potencial de escândalo no seu enterro. Traduzindo: presenças femininas indesejáveis. Por isso, tratou de se prevenir e foi enfático na recomendação a seus irmãos e a um amigo de fé:

- Se aparecer alguma mulher de óculos escuros, que vocês não conheçam, façam o que for necessário para tirar ela do recinto. Não quero escândalo no meu velório.

A preocupação se justificava. Queria preservar a família, a futura viúva e os filhos, de um vexame na hora da dor. Ele não estaria lá para se explicar, a não ser amorfamente como defunto, incapaz de reagir a um potencial barraco. Por isso, insistia com os irmãos.

- Não quero escândalo no meu velório. Cuidado com as mulheres de óculos escuros.

Tinha uma implicância com mulher de óculos escuros em velórios e enterros. Achava que os óculos encobriam olhares irônicos, cínicos ou ressentidos, próprios de uma ex, em relação ao morto e os presentes no ato fúnebre. Olhares do tipo “eu sei que vocês sabem quem sou e o que sei”.

Ainda estava vivo na sua memória o acontecido com um parente, encontrado morto em circunstâncias suspeitas – numa cama de motel, dentro do carro, jogado na rua, eram as versões, mas sempre ressalvando que ostentava um último esgar de satisfação.

Sucede que no dia do enterro do parente, um primo distante, apareceu a outra, calça jeans apertada,com os temíveis óculos escuros, dos bem grandes, e um filho no colo, exigindo seus “dereitos”. Não dava para negar a descendência: a criança, com dois ou três anos, era a miniatura do defunto, o mesmo cabelo encaracolado, o nariz levemente achatado e os olhos vigilantes do ex-parente. E a mãe ainda batizara-o de Junior, agregado ao nome do “pai”. Cildo, de Oracildo, Junior.

Então, aconteceu a cena clássica e patética. A mulher se debruçou sobre o caixão, com o Cildinho chorando no colo e gritava:

- Me leva junto, mor. A vida não tem mais sentido pra mim e pro Junior. Nós queremos estar contigo para sempre. Leva a gente, mor! assim mesmo, na forma reduzida de amor.

Não se viu uma lágrima derramada pela moça, talvez por causa daqueles enormes óculos de camelô, certamente um presente do falecido. Mas a dramatização era convincente.

- O que vai ser de mim e do Junior agora que ele nos deixou, choramingava a moça.

O velório virou um fuzuê. A viúva teve um faniquito e os filhos do ex-parente, já taludos, queriam partir para a agressão à incômoda visitante. Como mais alta autoridade presente no recinto, foi chamado a intervir.

- Minha senhora, permita que eu lhe explique algumas coisas, mas fora daqui, abordou jeitoso.

- O senhor não entende. O que aconteceu foi uma desgraceira. O que será de mim e do Junior agora, insistia a inconveniente.

O burburinho do ambiente já tomava proporções incontroláveis e ele negociando com a moça.

- Minha senhora, vamos lá fora conversar. O Oracildo falava muito bem da senhora e deixou instruções para que a gente cuidasse do caso, se ele viesse a faltar, continuou cerimonioso, insinuando providências prévias que nunca foram tratadas.

- Ah, é? Ele falou de mim e do Junior? O que ele disse? O que ele pediu?

A moça agora estava acesa com a possibilidade de algum legado deixado pelo falecido.

(continua)

sábado, 2 de abril de 2011

Não sinto saudades do telex

                                                           Olha o telex ai, gente 

Outro dia levei um susto aqui em casa quando assistia as emoções de Insensato Coração. Ouvi um som intermitente que me recordou vagamente uma emissão já conhecida. O som insistiu em atrapalhar a atenção que dedico a trama da novela, até que me dei conta do que se tratava: era o telefone fixo da casa chamando.  Já havia esquecido da existência do aparelho que, em tempos idos, prestou grandes serviços à família, mas hoje está relegado a receber incômodas ligações de telemarketing ou servir de brinquedo para Maria Clara.

E dizer que precisei usar de um pistolão na Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT, lembram?) para a instalação da linha, quando me transferi em 1983 para a morada da Osmar Meletti, na Aberta dos Morros (o bairro existe, sim). Saibam os mais jovens que o chamado telefone convencional já foi sinal de status e era obrigatório declarar ao Imposto de Renda a posse da linha entre os bens patrimoniais. Até hoje recebo uns R$ 4,00 de bonificação, todos os anos, pelo contrato que firmei com a CRT.

Não me tomem por saudosista, apenas registro uma dramática mudança de comportamento provocada pelo avanço tecnológico da telefonia móvel - os celulares e toda a parafernália de equipamentos e serviços que nos encantam e assustam.

Nos tempos em que era um esforçado repórter esportivo na Folha da Tarde e na Zero Hora toda a tecnologia que tínhamos disponível para transmitir nossas matérias ou fotos em viagem era o telex e o aparelho de telefoto. A discagem direta a distância (DDD) recém estava se expandindo e não eram todas as cidades que tinham acesso ao sistema. Era um suplício, nas coberturas do campeonato nacional de então, enviar fotos das capitais nordestinas, por exemplo. A ligação para a redação precisava ser pedida com boa antecedência para possibilitar a transmissão à tempo, antes do fechamento da edição. Os banheiros dos nossos quartos nos hotéis se transformavam em câmaras escuras e infectas pelos produtos químicos que revelariam os filmes fotográficos. Reveladas, ampliadas e secadas, as fotos – cinco ou seis no máximo – eram instaladas na máquina de telefoto e aí começava outro suplício – o bip-bip da transmissão, linha a linha, da imagem. Qualquer interferência na linha telefônica, e isso era freqüente, deixava marcas na foto transmitida e aí era preciso começar tudo de novo. Um estresse.

Transmitir as matérias não era menos complicado. Poucas cidades possuíam telex público, normalmente instalados nos serviços do Correio, então era preciso molhar a mão do telexista para que ele comparecesse no domingo ou fizesse plantão à noite para atender a reportalhada. Menos mal que os operadores eram rápidos e eficientes, rapidez e eficiência que aumentava na mesma proporção da gorjeta. Primeiro a gente redigia a matéria na máquina de escrever (o Google explica do que se trata) e depois o texto era teclado para uma fita picotada em que cada tipo de picote representava uma letra. Os repórteres mais habilidosos e talentosos, que não era o meu caso, redigiam o textos diretamente no telex. Completada a transposição para a fita picotada, a serpentina era transmitida igualmente por linha telefônica, ponta a ponta. Na redação, o material era reproduzido em papel especial que, rabiscado e emendado pelos editores, era” baixado” direto.

Era um jornalismo mais artesanal. Estão aí, bem vivinhos, o Roberto Azevedo, o Emanuel Mattos,o Cláudio Dienstman, o Luis Ávila, o Paulo Dias, o Sérgio Arnoud e tantos outras malas que não me deixam mentir. Hoje até eu, um semi incluído digital, consigo enviar fotos do outro lado do mundo e texto nem se fala. Santa Internet!

Por isso não sinto saudade daqueles tempos heróicos. Agora, com todo o avanço tecnológico, tudo ficou mais fácil, mais ágil, mais eficaz. E uma vez que a tecnologia está ao alcance da maioria, igualando as ferramentas e o processo produtivo, o que continua estabelecendo o diferencial é o conteúdo. Que, como antigamente, deve ser “denso, forte e consistente”, que era a senha para começarmos nossas matérias nos confins do Brasil.