segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O poder da palavra


*Publicado  nesta data em coletiva.net

Sou verdadeiramente fascinado pela pregação dos evangelizadores dessas igrejas pentecostais.  Fico boquiaberto com a capacidade deles de transmitirem suas mensagens em nome do Senhor.  São máquinas de falar, equipadas com o que há de mais eficaz em termos de convencimento.  Experimentem assistir aos cultos na TV: os caras conseguem dominar qualquer plateia e fazê-las até mesmo acreditar que  os supostos milagres ali apresentados são reais,  que o paralítico voltou a  andar, que o cego recuperou a visão, que a doença abandonou o corpo do sofredor.  A força da imagem,  todo o colorido dos cenários e a movimentação durante o culto se curvam quando o verbo se impõe.  

Há que se respeitar e temer esse processo, porque não interessa o que as pessoas estão vendo, mas o poder da palavra, a capacidade de persuasão. Nossos missionários  provavelmente aprenderam com os tele evangelistas dos Estados Unidos que são mestres na oratória e na expressão corporal, embora sejam mais sutis na arte de arrancar contribuições dos fiéis, diferente dos tele pastores tupiniquins, excessivamente agressivos na dita arte.

No Centro de Porto Alegre, eventualmente, cruzo com algum pregador a brandir, Bíblia na mão e sempre engravatados,  contra os pecados e os pecadores.  Nesse caso, o que me impressiona é o volume da voz, sempre grave e sonoramente impositiva, enquanto o olhar se dirige ao infinito, onde talvez esteja recolhido seu deus.  Pouca gente presta atenção ao matraquear  dessas pregações, porque falta a mística dos templos,  mas eles não esmorecem e no dia seguinte voltam para imprecar contra os males deste mundo pecaminoso.

Acredito, mesmo, que o crescimento da cruzada evangélica está diretamente vinculado à força da palavra que emana dos seus cultos. E assim se espraia uma onda de conservadorismo, ao mesmo tempo em que outros sinais de poder terreno se sobressaem, como a formação de uma verdadeira bancada evangélica nos parlamentos, o investimento em templos salomônicos e em veículos de comunicação ou  em horários nobres nas redes comerciais.  Aqui vale a observação do professor de sociologia da religião da PUC-SP, Edin Abumanssur: “Antes a gente era católico por herança, agora existe concorrência”. E que concorrência, acrescento eu.

A rigor, não estou sendo original no reconhecimento do poder do discurso evangélico.  Silvio Santos, dono do SBT e um dos mais festejados  animadores da TV, chegou a afirmar há alguns anos que gravava em fitas os cultos do líder da Igreja Universal, o bispo Edir Macedo, para ouvir no carro. “O Edir Macedo me chama a atenção pela forma como fala”, explicou o homem do Baú.  Vale recordar que o bispo Edir é o proprietário da Rede Record, concorrente do SBT.

Que fique claro que não estou fazendo juízo de valor sobre a ação das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, se tem doutrina ou não, mas apenas constatando uma verdade:  seus líderes são bons de goela.  Eu mesmo acabei  sendo envolvido por um deles. Foi assim: tempos atrás, depois de uma reunião em que tratamos assuntos profissionais,  sugeri que o pastor com o qual conversava que me incluísse  nas orações dele. Estava querendo ser cordial, mas foi a senha para que ele pegasse minha mão e começasse a reza, invocando os céus numa voz tonitruante:

-   Vamos pedir bênçãos ao senhor Deus agora mesmo! Senhor, protegei este teu filho, que precisa muito de tuas bênçãos, do teu amor.  Estendei, ó Senhor, tua proteção e tuas graças aos familiares deste teu filho,  a nossa cidade e a seu povo para que nada de mal lhes aconteça...

E emendou, sem uma pausa sequer, mais uma dezena de pedidos de bênçãos,  enquanto segurava firmemente meus braços como se quisesse transmitir uma corrente de fé ao ateu  que habita em mim. Apesar de tudo, portei-me civilizadamente e o generoso pastor saiu convencido de que eu fora tocado por suas rezas.  O que ele não sabe é que eu estava preocupadíssimo em que alguém entrasse na sala e visse aquela cena pra lá de estranha. Precisaria de uma oratória de pastor para poder explicar e convencer.

*Texto publicado no livro Quando Eu Fiz 69, que  terá  sessão de autógrafos  na Feira do Livro de Porto Alegre  dia  8/11, as 18h30.
                                                                                                                                   

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Penúltimo


*Publicado nesta data em coletiva.net

Reza a crendice popular que não se deve usar o termo último para qualquer tarefa a ser executada. Último é o fim da linha e depois só a morte. Igualmente não convém usar último com o sentido de o mais recente. Não sou dado à crendices, mas costumo me ater ao rigor gramatical para preferir o mais recente ao último. Na verdade, tenho optado  mais pelo penúltimo (a), talvez como forma inconsciente de adiar o último, ou seja, o ato final.

Penúltimo tem seus encantos. Penúltimo é o vice ao contrário e o vice, como ocorre com frequência na política, pode ascender à primeira posição. Penúltimo é  bem dotado de classes gramaticais: é adjetivo quando significa que ocorre ou aparece imediatamente antes do último e é substantivo masculino  quando indica algo ou alguém que ocupa essa posição. Penúltimo  tem origem nobre, vem do latim paenultimus.a.um. Penúltimo tem a sonoridade das proparoxítonas e pode se orgulhar de conter quatro das cinco vogais, o que não é  para qualquer palavra. 

Quatro são também as versões de penúltimo em inglês, três delas compostas - second to last, next to last, last but one e mais uma latinizada, penultimate.  Ou seja, penúltimo está podendo em inglês.

A palavra permite ainda algumas frases de efeito, sendo que uma delas marcou um período da história recente da política brasileira: “...no Brasil de hoje o corno é o penúltimo a saber  - o último é  sempre o presidente Lula”. O autor:  Roberto Jefferson, aquele que fez as primeiras – e penúltimas ? - denúncias sobre o Mensalão do PT.  Bem menos chula é a do neurologista, fisiologista e antropólogo italiano Paolo Mantegazza (1831-1910):  “Nenhum homem se julgou jamais o último; até os mais humildes querem ser penúltimos. “

Pra falar a verdade, não consegui alcançar o que quis dizer o autor da frase, que se notabilizou por ter isolado a cocaína da coca, utilizada em experimentos para investigar seus efeitos em humanos. Vai ver  tinha dado um pega antes de criar a frase em questão.

Por penúltimo, cabe esclarecer que o mote para esta crônica não tem qualquer relevância e surpreendo-me ao constatar que o assunto já  rendeu pelo menos cinco parágrafos. É que me desafiei  a produzir um texto tendo penúltimo como tema, como ocorreu, tem gente que jura que é  verdade,  com Chico Buarque de Holanda ao ser desafiado a incluir a palavra paralelepípedo numa de suas composições. A genialidade de Chico teria atendido na antológica Vai Passar,
Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais.

Maravilha. Agora quero ver ele fazer uma música usando penúltimo (a). Já  aviso que estou preparando  uma crônica sobre  paralelepípedo. Te cuida, Chico.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Guerreiro das gôndolas


* Publicado nesta data em coletiva.net

(Vagamente baseado em fatos reais)

- Alguém viu o Hailander?

Quem pergunta é a Cyntha Prescila.

- Parece que tá lá no depósito.

Quem responde é Ricarlison.

- Não mesmo, vi o Hailander lá pros lados do vestiário.

A interferência foi da Kimberly

- Bah, este cara vive sumindo.

A queixa é do Uillian.

(- Já tá merecendo um corretivo)

O resmungo, quase inaudível, é do Dionathan.

- Este guri não  tem mais jeito.

 O repique é da Qelly Maria

Vocês estão autorizados a pensar que o Hailander, o guri do supermercado, recebeu o apelido por causa do personagem dos filmes e séries Highlander, conhecido como o Guerreiro Imortal,  o escocês que, mesmo ferido mortalmente em combate, ressuscitava tempos depois. Nosso Highlander das gôndolas teria o dom de desaparecer durante o  expediente para reaparecer tempos depois, lépido e faceiro, pronto para novas batalhas de empacotamento nas caixas.

Nada disso,  no crachá do garoto mirradinho, de cara espinhenta e cabelo espigado que lembra o primeiro ministro inglês, está escrito Hailander José da Silva.

O pai era fã do herói, mas a mãe não abriu mão de juntar o nome  do pai, seu Zé, homem respeitável no pedaço, ao nome do guri, que não fez jus à fama do avô nem a coragem do Highlander, mas tão somente à capacidade de sumir e reaparecer. Para não dizerem que não tem nada mais a ver com o personagem, o garoto é meio vesguinho como Cristofer Lambert, o Highlander original. Aliás, por  pouco  não recebeu o nome de Kristobert em homenagem ao ator, mas a mãe achou  que aí já era um exagero.

Quem revela esses histórico sobre o  garoto é o gerente do mercado, um sujeito simpático e amigo da familia, de nome estranho para aquele ambiente:

- João Carlos da Silveira, as suas ordens.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Um negócio promissor


* Publicado nesta data em coletiva.net

Vivemos a era dos aplicativos. Na coluna anterior, inclusive,  gracejei sobre o PTinder, iniciativa digital para aproximar pessoas de esquerda. A constatação óbvia é  que empresas, instituições  ou serviços sem seus épis – é assim que os locutores anunciam nos  comerciais – estão fadadas ao fracasso.  Não vai faltar um acadêmico defendendo uma  tese de que estes tempos pós verdades se dividem em AApp/DApp.

A gama de serviços oferecidos não tem limites. Do transporte individual à entrega do rancho, do crédito bancário às compras nas lojas, dos consertos domésticos ao pedido de refeições,  tudo pode ser resolvido por meio dos épis. É a uberização do  nosso cotidiano  E tudo na agilidade de atendimento de, no máximo, 15 minutos. Nunca houve tanta comodidade para os cidadãos  e nunca haverá tanta dependência de um processo.

Sucede que meu amigo Solano* resolveu criar um aplicativo para fornecimento de acompanhantes e similares à domicílio, que ele registrou como UberSex. Por enquanto, é uma  startup, mas muito promissora como negócio. Claro que o sistema já existia por telefone, mas o amigo introduziu inovações nas suas funcionalidades, garantindo total privacidade aos demandantes, além de oferecer um completo perfil e os predicados dos e das acompanhantes. Sim, porque o serviço é multisex, inclusive com o agregado TransExpress que, junto com o GirlExpress e o BoyExpress, vem reforçar o conceito adotado pela firma – “toda a forma de relacionamento ao alcance de seus dedos”.

Ao me relatar os detalhes do empreendimento e pedir confidencialidade sobre outras inovações, fiz ver ao Solano, entretanto, que a expressão “ao alcance  dos  seus dedos” podia  significar uma ambiguidade diante da natureza dos serviços oferecidos.  A resposta veio acompanhada de um sorrisinho safado:

- Neste ramo de atividade, ambiguidade é fundamental. Veja o caso das “acompanhantes”,- e fez o sinal com os dedos simulando aspas.

E como se fosse um Zuckerberg do erotismo, passou a discorrer mais sobre a potencialidade do seu negócio, agora  sem ambiguidades:

- A  sacanagem tem que se modernizar e isso só pode ocorrer pelo modus operandi nas contratações, porque em termos “daquilo” (eu esperava que ele usasse um termo mais  chulo) não há mais novidades. Outra coisa: vamos garantir privacidade plena aos interessados, evitando, por exemplo, aqueles carrões negociando nas ruas com os trans, como ocorre  em alguns locais de Porto Alegre...
E, após uma pausa dramática, anunciou:

-  Agora estou planejando até em abrir franquias da UberSex. Por acaso, está interessado?

A proposta era tentadora, mas recusei de pronto. Tenho o maior  respeito pelos empreendedores, mas considerei que a UberSex não seria bem recebida como investimento no ambiente em que transito. Até  porque estou tentando me livrar da pecha de que só penso “naquilo”, sobretudo depois do meu último livro, Quando Eu Fiz 69.  Quem me conhece sabe que isso é uma tremenda injustiça, o que não impede uma discreta torcida pelo sucesso do amigo.

*Nome fictício.