segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Assalto ideológico


*Baseado em fatos reais

Este causo quem me relatou foi o Neni, que sabe tudo de política e de Grêmio. É sobre o primeiro tema o relato, que dá conta de um assalto a um boteco categoria pé sujo, lá para os lados da zona norte. Sucede que o  boteco era em frente ao edifício onde morava uma das mais importantes lideranças do chamado campo da esquerda.  Na época nem era tão importante porque o tal campo de esquerda ainda não havia provado as benesses do poder, mas a liderança já era bem conhecida graças a sua atividade sindical. E, claro, ele estava presente no estabelecimento assaltado, dando uma calibrada, quando ocorreu o fato. 

Diante do indivíduo que ditava ordens aos assaltados, a liderança não se conteve e chamou-o à razão:"Companheiro, a gente precisa se respeitar, afinal nós aqui somos do partido que representa a classe trabalhadora.  No fundo somos iguais na luta diária dos desvalidos contra os poderosos".

Sem querer, a liderança cometeu um ato falho histórico ao prever a igualdade entre o ladrão e determinadas lideranças do campo democrático de esquerda, o que não é o caso do nosso personagem, figura inatacável.

O que ele não esperava era a resposta do assaltante: " Pois eu sou neoliberal",  tripudiou o incômodo visitante, revelando alguma cultura politica. "E passa logo este anel ai", determinou, apontando para o dedo nodoso que ostentava uma  vistosa aliança dourada.

Nosso líder ainda tentou protelar a entrega, alegando que não conseguia tirar a aliança. Pragmático, o assaltante ofereceu logo uma solução: "Não seja por isso, cidadão. Mostra o dedinho aí que eu resolvo". E sacou da algibeira uma faca de dar inveja a churrasqueiro zeloso.  Foi então que num passe de mágica a aliança desgarrou do dedo nodoso e foi entregue ao perigoso pedinte.

O dono do estabelecimento, por sua vez,  tentou esconder no bolso da camisa, uma peça de vestuário moderninha para a época, uma correntinha dourada, herança familiar de três gerações. Mas a estratégia não deu certo.  Na saída do restaurante, consumada a limpa na clientela, o assaltante virou-se para o proprietário e anunciou: " Ô, meu, gostei muito desta tua camisa. Tira ela que eu vou levar".E lá se foi a medalhinha da família.

Ao final, salvaram-se todos, fisicamente inteiros, mas moralmente  abalados.  A liderança politica resumiu o sentimento do grupo:

- Que país é este em que não se respeita nem mesmo uma liderança dos oprimidos? Cumpanheirada, ainda temos um logo e duro caminho pela frente, vaticinou.

E pediu um liso dose dupla para confortar-se e retomar a tranquilidade.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Carnaval da mesmice

* Reeditado a partir de original publicado em fevereiro de 2010, mas continua valendo.

Está aí o Carnaval, que os antigos chamavam de Tríduo Momesco, e já me preparo para a repetição das mesmas imagens, dos mesmos chavões, nas coberturas televisivas. As telinhas serão invadidas por aqueles horrorosos bonecos gigantes de Olinda e o repórter Francisco José, na sua aparição anual na TV, vai fazer os mesmos comentários sobre a empolgação do Galo da Madrugada, a história do Homem da Meia Noite e da Mulher do Dia, e por aí vai. O cabeça branca Francisco José já deve ter decorado o texto, de tanto repetir as mesmas ladainhas sobre as mesmas imagens.

 Corta para Salvador e lá aparece a procissão de Trios Elétricos e as mesmas figurinhas carimbadas sacolejando sobre os palcos móveis com a massa frenética pipocando lá embaixo, suando nos seus abadás. E muita louvação ao Chiclete com Banana, Osmar e Dodô, Timbalada, Olodum, Ivete Sangalo, Cláudia Leite e outros menos votados.

No Rio e em São Paulo, o repeteco não é muito diferente. Os enredos mudam e mostram novidades, mas a cobertura televisiva não apresenta diferenciais. Ao contrário, evoluiu em tecnologia, mas falta aquela sacada, aquele algo mais. Com um agravante: o naipe de comentaristas, gente da melhor estirpe, não consegue emitir uma opinião conclusiva ou mais contundente, como se avaliar criticamente o resultado do trabalho dos carnavalescos fosse um crime de lesa cultura. E o que vemos é uma profusão de efeitos especiais para mascarar a mesmice da transmissão burocrática, que não expressa a verdadeira dimensão da grande festa popular.

Aqui, nosso Carnaval só evoluiu nos blocos de rua e parece ter estacionado no passado nos desfiles das grandes escolas, tanto assim que sobram ingressos para o Porto Seco.  Além disso, vou ser obrigado a conviver com duas pautas obrigatórias que se repetem todos os anos. Uma é a do Rebanhão, aquele pessoal que prefere fazer retiro durante o Carnaval e orar pela redenção dos pecadores e bota pecado nisso. Parece que estou vendo o repórter fazendo seu boletim na igreja ali do Cristal, tendo ao fundo os fiéis, mãos erguidas aos céus, entoando hinos sacros e muitas rezas. A outra é o Carnaval no barro, de Santa Bárbara do Sul. Vocês já devem ter visto as cenas do pessoal todo enlameado, por isso vou me abster de outras considerações.

Diante deste quadro estou pensando em sugerir aos pauteiros, chefes de reportagens e editores que poupem energia e recursos. Busquem nos arquivos as imagens desses eventos em anos anteriores e coloquem no ar, pode até repetir o texto, que vai dar na mesma.

De minha parte, já decidi: este ano vou me refugiar e curtir minha rabugice em Curasal.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Que crise!*

* Baseado em fatos reais

A crise econômica que ameaça o Brasil já chegou às finanças de todos nós.  Era inevitável e nem falo dos preços do essencial e do supérfluo nos supermercados e mercadinhos.  A gasolina disparou, a energia elétrica nos dá choque a cada conta e, com isso, toda a cadeia produtiva está validada para aumentar os preços dos seus produtos e serviços. 

Tive um exemplo prosaico dia desses quando precisei do sujeito que corta a grama lá de casa e ele me avisou, respeitoso, mas cheio de razão: “ Doutor,  não saio de casa por menas de 150 real.”  Assim mesmo, no singular e atropelando a gramática, e 50% acima do que cobrava anteriormente. Marchei bonito, antes que o mato encobrisse a morada.

O pior desse  perverso processo antipovo  são outras situações que tenho testemunhado, situações de puro constrangimento a pessoas próximas, que  até então esbanjavam otimismo e muita grana.  Uma querida amiga, por exemplo,  foi interpelada no Centro Histórico por um morador de rua, 
estabelecendo-se o seguinte diálogo:

- Tia,  uma moeda pro almoço...

- Também quero, respondeu a moça, que de tia não tem nada.

O interpelante ficou muito contrariado e resmungou qualquer coisa sobre a insensibilidade humana. Mas a verdade é que a moça, antes frequentadora dos espaços gourmet mais festejados, agora tem que se contentar com os bufetes à quilo,  mais requisitados pelos seus baixos preços  e de preferência os que oferecem um suco grátis.

E tem o caso do titular de importante e demandada banca advocatícia que encontrei à entrada de um restaurante categoria pé sujo e que me confessou que aderira ao prato feito e a  à la minuta do referido estabelecimento. “ Sai mais em conta, sabe como é, a coisa não tá fácil “,  afirmou com convicção, mas logo escapuliu para não ser visto  por eventuais clientes num local pouco recomendável.

Outro parceiro, conhecido por afetar gostos refinados em relação às bebidas, foi surpreendido no BIG agarrado a um fardinho de Kaiser e a um tinto nacional.  Logo ele, que se dava ao luxo de escolher entre uma Duvel belga e uma Backer tcheca, e só aceitava servir vinhos e espumantes que custassem mais de 100 dólares, conforme recomendação que assistira num desses tantos programas de gastronomia da TV.  “Saudade dos churrascos com picanha e file mignon.  Hoje é na base do salsichão e da coxinha da asa”, confidenciou, ligeiramente desolado,  ao amigo que deu o flagra.

Mais um case: senhora de nossas relações só conseguiu agendar uma diarista depois de recorrer a uma amiga professora...que indicou outra professora que transferira seu turno na escola pública para a noite e faxinava durante o dia. “Ganho muito mais como diarista do que como professora, porque não estava dando pra sobreviver”, explicou, neste caso sem qualquer constrangimento.


Pensei  cá com meus zíperes em relação aos outros casos: ‘Esse pessoal perde status, mas não perde a pose, será que inventaram a chinelagem chique?’, mas logo revisei minha posição e me coloquei solidário com todos os que os que entraram para o time dos despossuídos, mesmo que momentaneamente. Foi aí que entendi a política governamental de encurtar a distância entre a base e o topo da pirâmide social brasileira.  Pensava que era promovendo  a ascensão das classes mais baixas, mas na prática é isso e mais o rebaixamento acelerado do chamado andar de cima. Só que crise é igual a inflação e recessão e  pega em cima e embaixo, e aí é salve-se quem puder. 

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Nostalgia do futuro

* Publicado originalmente em 16/04/2011, mas continua atual

Um estranho sentimento está se apossando de mim. Não é saudade do passado, mas uma nostalgia do futuro. Fico a imaginar o que ainda posso realizar daqui pra frente, o que de novo vou experimentar, o que me reserva de surpresas a roda do destino, eu que já palmilhei tantos caminhos, já sofri muitos reveses e celebrei tantas conquistas. 

Por mais que eu maneje os cordéis e tente direcionar o rumo, tenho consciência de que o comando desse processo não está nas minhas mãos e o futuro só me pertence como efeito de uma causa que provavelmente não criei. O bater de asas de uma borboleta do outro lado do mundo pode ter mais poder sobre o meu e o seu futuro do que todos os esforços que fizermos para aplainar o terreno do porvir. O “efeito borboleta” é real e não apenas roteiro de filme.

O que me tortura é o que eu não farei, os projetos que não realizarei, os livros que não lerei, os filmes que não verei, as viagens que não curtirei, os afetos que não trocarei, todos os sonhos que ainda acalento e que não tornarei realidade. Sinto imensa saudade do que ficarei devendo na minha biografia, grandes ou pequenos eventos que poderiam mudar o rumo desta quadra da minha existência, tão sujeita ao déjá vu.


O tempo é cruel conspirador contra os meus planos e mesmo que todos os deuses da terceira idade se unam a meu favor vai ficar um vazio e continuarei devedor de mim mesmo. É uma tremenda injustiça, mas pensando bem, pelo menos terei uma boa desculpa para as coisas que não farei.