segunda-feira, 15 de junho de 2020

O obituário


* Publicado nesta data  em coletiva.net.
Confesso que  sempre dou uma  olhada nos obituários  dos nossos jornais e, às vezes, sou surpreendido com um conhecido que se foi sem que eu tivesse a informação.  Confesso também que me preocupa muito a frequência com que constato a  perda de gente próxima e aí vale aquela lógica, segundo a qual  quanto mais velho a gente fica, vai a mais velórios e enterros do que a casamentos. É a lei da vida.

Já fui também fonte para necrológicos de amigos e familiares e, em todos os casos, me esmerei nos elogios aos que nos deixaram, embora em relação a uma ou outra figura, parentes à parte, haveria histórias pra lá de escabrosas para contar.

A troco do quê trato deste assunto funéreo, ainda mais nestes pandêmicos tempos de baixo astral.  É que sou altamente sugestionável, vale dizer movido pelas enticadas dos outros e foi o que ocorreu a partir de uma postagem no Facebook  do meu bom e talentoso amigo Márcio Pinheiro. O Marcito, como gosta de ser chamado, conseguiu  publicar um texto leve, atraente e informativo sobre obituários, tendo como  foco  a seção do  New  York Tiimes/NYT, na verdade, uma crônica de celebração à vida sobre os falecidos.  Esse processo editorial  foi tema de livros nos EUA e também aqui, no caso a  antologia organizada por Matinas Suzuki Jr., intitulada O Livro da Vida, reunindo obituários publicados pelo jornalão americano. Segundo Suzuki, o obituário é a “pauta de Deus”, uma ótima definição sobre o que não temos controle e  para quem acredita em divindades.

O que me ocorreu ou  a pilhada que me moveu, foi  imaginar um exercício, por  insidioso e cruel que possa resultar, de como seria nosso necrológico. O que diriam a nosso respeito as fontes  consultadas? Que  tratamento seria dado a nossa existência? Mereceríamos,  como no NYT ,  “textos curtos, mas não superficiais, curiosos, mas não bobos, emotivos, mas sem escorregar para  a pieguice, enfim, relatos escritos na medida certa, respeitando o rigor jornalístico, mas sem perder a ternura”, como destacou o Marcito, num parágrafo irretocável, que eu gostaria  ter escrito.

Lembro de como fui acarinhado em uma das minhas tantas despedidas profissionais, que até pensei tratar-se de um obituário antecipado. Deixei de ter defeitos, passei a ser uma pessoa maravilhosa e um chefe exemplar. Meu bom humor  destacado, minha competência profissional enaltecida, a generosidade reconhecida. Era doce e meigo; inspirador e motivador; irônico e debochado, aqui incluídos também como elogios. Bobagens que um dia pronunciei viraram mantras. Concedi benefícios, fiz favores e estendi a mão para mais pessoas do que imaginava. Fui atento nas atividades profissionais e sensível nas questões pessoais. Um exemplo de cidadão. O cara! Ok, tem uma boa dose de cinismo nisso daí.

Hoje, já haveria acréscimos, algo exagerados também em certas lembranças, tipo  “escritor de sucesso e blogueiro criativo”,  e não faltariam menções, não contestadas porque verdadeiras,  ao marido e pai amoroso e ao avô sem igual.

Enfim, acho que este texto cumpre um papel relevante para o seu autor, indicando como, enquanto defunto, ele gostaria de ser retratado.  Quem for escrever meu obituário, procure fontes confiáveis, aquelas que possam ser generosas nos elogios e comedidas  nas revelações menos nobres. Um pouco de solenidade e um tom épico nas realizações serão bem-vindos. Caso contrário,  virei pegar o pé dos detratores e povoar os sonhos deles com os piores pesadelos, onde graves defeitos e aquelas sacanagens recônditas surgirão como um tormento em forma de necrológicos em jornais de grande circulação.

Brincadeiras à parte, agora, se me permitem, vou lá fora  aproveitar para me encharcar de vida.


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