terça-feira, 12 de maio de 2020

O Inconveniente


* Publicado em 11/05/2020 em coletiva.net

Sabem aquele parente inconveniente que todas as famílias têm? Bem, confesso, envergonhado, que sou eu nos Vieira Dutra. Cansei das vezes em que disse coisas inapropriadas, constrangi familiares e visitantes, tomei umas a mais nas festas, mordi bebês, impliquei com a criançada, provoquei cizânias e discórdias, sem contar outras bobagens que nem lembro mais.

E tem a sessão trapalhadas. Um ramo da família sempre me joga na cara o dia em que lancei na churrasqueira o custoso aparelho ortodôntico de um sobrinho, que estava envolvido em um guardanapo – o aparelho, não o sobrinho. Pensando que era só um guardanapo, lá se foi o embrulho para as brasas. Foi um pequeno incidente perto de outros que até me permito omitir.  E  as gafes, hein!  Cometi e cometo aos montes, a maioria por querer bancar o engraçadinho, mas isso também não vem ao caso agora.

Meus filhos, pela proximidade, foram os que mais sofreram com minhas inconveniências. O Rafael, antes de trazer as namoradas e apresentar à família, alertava: “Pai, olha o que tu vai falar”. Bobagem dele, porque eu sempre dizia a mesma coisa: “Quais suas intenções com meu filhinho?”.  A Mariana, de  tanto acompanhar  este ritual, quando vinha com seu esquerdista do  momento, o rapaz já se antecipava dando conta das suas intenções. Ato contínuo, querendo agradar o potencial sogro, me entregava um fardinho de cerveja da marca “promoção” e depois expropriava, em proveito próprio, quase toda a minha reserva de cevas premium.

As amigas da Flávia frequentavam aos bandos a morada da Osmar Meletti e, claro, faziam várias refeições com a família. Uma das minhas intervenções preferidas nessas ocasiões  era exclamar: “Mas o que come esta tua amiga!”, com direito a ponto de exclamação.  As coitadas não sabiam onde se enfiar e, talvez por isso, começaram a rarear as comensais na casa. Devo ter feito uma brincadeira parecida com um sobrinho que estava passando uma temporada conosco e o guri chegou a recusar batata frita.  Repito: o guri recusou batata frita!

Posso ter causado alguns malefícios entre as relações familiares, mas ninguém virou serial killer por isso, nem rompeu comigo.  Faço essas digressões confessionais agora que estou confinado, imaginando que esse isolamento possa ter outra razão além de eu pertencer ao grupo de risco dos 60+.  A insistência dos  familiares para que não fique circulando por aí me leva a crer que  o que eles querem mesmo é evitar novas inconveniências nas interações com terceiros. A eles devo lembrar que um dia a pandemia passa, mas não garanto pelo meu comportamento pós-coronavirus.  É que muita coisa ficou represada e, como os abraços que precisaremos trocar, vou resgatar o tempo perdido.  Creiam, é  uma forma de expressar interesse e afeto, pois só quem a gente  ama merece a atenção de uma inconveniência.


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