segunda-feira, 20 de abril de 2020

De Bergoglio a Francisco


* Publicado hoje em coletiva.net

De perto ninguém é normal, canta Caetano Veloso. Nem o Papa, acrescento eu.  Pelo menos é o que deduzi pelas revelações do cineasta  Fernando Meirelles, diretor do ótimo Dois Papas, no programa Manhattan Connection de 9 de fevereiro. Contou ele  que ao pesquisar  na Argentina  para o roteiro do filme conheceu um Bergoglio diferente da imagem que Francisco adotou e que a mídia propaga agora. Autoritário e pouco amistoso, assim era descrito por quem conviveu com ele na arquidiocese de Buenos Aires.  As pessoas próximas não gostavam dele, afirmou claramente Meirelles, nada lembrando o simpático jesuíta de hábitos simples, conhecedor  das favelas e torcedor do  San Lorenzo.

Apesar das revelações, Meirelles foi um tanto condescendente na abordagem do filme sobre a atuação de Borgoglio, quando superior dos jesuítas na Argentina, no episódio em que dois padres da ordem são presos e torturados pela ditadura daquele país. O cineasta não chega  a falsear os fatos, como uma Petra Costa em Democracia em Vertigem, mas não aprofunda o ocorrido e  de alguma forma até justifica a proximidade do superior jesuíta, então de perfil conservador, com um dos ditadores militares nos anos de chumbo da Argentina. Assim conseguiu proteger seus discípulos mais combativos, segundo versão oficial. A irmã de um dos sacerdotes torturados (Orlando Yorio) afirma, porém, que Bergoglio teria deixado os dois totalmente desprotegidos  naquele período autoritário. O outro jesuíta, Franz Jalics, absolve Bergloglio, com o qual já se reconciliou, como mostra o filme.

Interessante registrar que outro filme, a coprodução da  Argentina, França e Espanha de 2012, Elefante Branco , conta uma história muito semelhante à vivida pelos padres engajados, ambientada numa favela da periferia de Buenos  Aires. É estrelado pelo sempre presente Ricardo Darin, que protege um padre de origem francesa, perseguido pelas forças de segurança, enquanto a autoridade eclesiástica não ampara  os religiosos locais na luta cotidiana contra a miséria, a violência  e suas consequências no território onde atuavam.  Fica a dúvida se o representante do alto clero seria Bergoglio ou, se na verdade, ele encarnaria o personagem de Darin, atuando em situações parecidas como as da vila periférica, conforme descritas em Elefante Branco.

Estaríamos diante de um papa marcado por contradições, de origem conservadora no início da vida sacerdotal, agora progressista, tanto nas questões sociais  como dogmáticas? É preciso reconhecer que o papa já não  sustenta  aquela autoridade capaz de garantir obediência  cega de todo o  rebanho católico.  Aliás é entre os católicos, inclusive da hierarquia, que Francisco enfrenta as maiores resistências às mudanças que pretende implantar. Nem o dogma da infalibilidade papal em questões de fé é considerado pelos contestadores, entre eles fortes setores mais conservadores do catolicismo da Alemanha e dos Estados Unidos,  de onde vem as maiores contribuições para a manutenção e as obras sociais da Igreja, o que  pode gerar uma crise nas finanças do Vaticano.

Já atuei numa instituição ligada a estrutura da Santa Sé, a Cáritas Internacional, mas não  me tomem por vaticanista, embora considere a expressão muito charmosa e dignificante. Como sempre e para me eximir de outras responsabilidades, me apresento como um observador do quotidiano,  e nessa condição constato que  o  Santo Padre de santo não tem nada. É  tão humano como a turista inconveniente que recebeu uns tapas na mão ao puxá-lo numa caminhada junto ao povaréu. Quem também se frustrou no contato pessoal  com Francisco foi o já citado Meirelles. Presente em uma audiência de personalidades no Vaticano, ele conta que o Papa não deu a mínima  quando, num breve diálogo, falou sobre o filme que estava produzindo.

Os dois episódios, contudo, só reforçam a dimensão humana do Papa e é essa dimensão que o torna distinto em meio a pompa e circunstância que o cerca como sucessor de Pedro. Graças a isso, Francisco se posicionou e reposicionou a Igreja Católica nas manifestações e iniciativas diante da tragédia que se abateu no mundo todo, mas particularmente na Itália, com a pandemia da Covid-29. As exortações papais, nem progressistas nem conservadoras neste caso, mas plenas de compaixão, solidariedade e defesa da vida, voltaram a ser respeitadas e acatadas, até mesmo por não católicos.

As imagens das celebrações da quaresma, sem a presença de fiéis, tiverem a força dramática de emocionar audiências em todo o mundo, mais do que se ocorressem do modo tradicional, repletas de público na praça e na  Basílica de São Pedro. Eis aí, ressalte-se também, uma vantagem dos católicos sobre as outras igrejas: tem um líder reconhecido, de uma linhagem de mais de dois mil ano. Além disso, o carismático pontífice já mostrou que é bom de comunicação.

Talvez seja esse momento de aflição da humanidade e do seu rebanho em particular, que ajude Francisco a ganhar um novo alento para levar adiante um papado que se propõe renovador. Com as bençãos do Espírito Santo, como creem os católicos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário