* Publicado hoje em coletiva.net
De perto ninguém é
normal, canta Caetano Veloso. Nem o Papa, acrescento eu. Pelo menos é o que deduzi pelas revelações do
cineasta Fernando Meirelles, diretor do
ótimo Dois Papas, no programa Manhattan Connection de 9 de fevereiro. Contou
ele que ao pesquisar na Argentina
para o roteiro do filme conheceu um Bergoglio diferente da imagem que
Francisco adotou e que a mídia propaga agora. Autoritário e pouco amistoso,
assim era descrito por quem conviveu com ele na arquidiocese de Buenos
Aires. As pessoas próximas não gostavam
dele, afirmou claramente Meirelles, nada lembrando o simpático jesuíta de
hábitos simples, conhecedor das favelas
e torcedor do San Lorenzo.
Apesar das revelações,
Meirelles foi um tanto condescendente na abordagem do filme sobre a atuação de
Borgoglio, quando superior dos jesuítas na Argentina, no episódio em que dois
padres da ordem são presos e torturados pela ditadura daquele país. O cineasta
não chega a falsear os fatos, como uma
Petra Costa em Democracia em Vertigem, mas não aprofunda o ocorrido e de alguma forma até justifica a proximidade
do superior jesuíta, então de perfil conservador, com um dos ditadores militares
nos anos de chumbo da Argentina. Assim conseguiu proteger seus discípulos mais
combativos, segundo versão oficial. A irmã de um dos sacerdotes torturados
(Orlando Yorio) afirma, porém, que Bergoglio teria deixado os dois totalmente
desprotegidos naquele período
autoritário. O outro jesuíta, Franz Jalics, absolve Bergloglio, com o qual já
se reconciliou, como mostra o filme.
Interessante registrar
que outro filme, a coprodução da
Argentina, França e Espanha de 2012, Elefante Branco , conta uma história
muito semelhante à vivida pelos padres engajados, ambientada numa favela da
periferia de Buenos Aires. É estrelado
pelo sempre presente Ricardo Darin, que protege um padre de origem francesa,
perseguido pelas forças de segurança, enquanto a autoridade eclesiástica não
ampara os religiosos locais na luta
cotidiana contra a miséria, a violência
e suas consequências no território onde atuavam. Fica a dúvida se o representante do alto
clero seria Bergoglio ou, se na verdade, ele encarnaria o personagem de Darin,
atuando em situações parecidas como as da vila periférica, conforme descritas
em Elefante Branco.
Estaríamos diante de um
papa marcado por contradições, de origem conservadora no início da vida
sacerdotal, agora progressista, tanto nas questões sociais como dogmáticas? É preciso reconhecer que o
papa já não sustenta aquela autoridade capaz de garantir
obediência cega de todo o rebanho católico. Aliás é entre os católicos, inclusive da
hierarquia, que Francisco enfrenta as maiores resistências às mudanças que
pretende implantar. Nem o dogma da infalibilidade papal em questões de fé é
considerado pelos contestadores, entre eles fortes setores mais conservadores do
catolicismo da Alemanha e dos Estados Unidos, de onde vem as maiores contribuições para a
manutenção e as obras sociais da Igreja, o que pode gerar uma crise nas finanças do Vaticano.
Já atuei numa instituição
ligada a estrutura da Santa Sé, a Cáritas Internacional, mas não me tomem por vaticanista, embora considere a
expressão muito charmosa e dignificante. Como sempre e para me eximir de outras
responsabilidades, me apresento como um observador do quotidiano, e nessa condição constato que o
Santo Padre de santo não tem nada. É
tão humano como a turista inconveniente que recebeu uns tapas na mão ao
puxá-lo numa caminhada junto ao povaréu. Quem também se frustrou no contato
pessoal com Francisco foi o já citado
Meirelles. Presente em uma audiência de personalidades no Vaticano, ele conta
que o Papa não deu a mínima quando, num
breve diálogo, falou sobre o filme que estava produzindo.
Os dois episódios,
contudo, só reforçam a dimensão humana do Papa e é essa dimensão que o torna
distinto em meio a pompa e circunstância que o cerca como sucessor de Pedro.
Graças a isso, Francisco se posicionou e reposicionou a Igreja Católica nas
manifestações e iniciativas diante da tragédia que se abateu no mundo todo, mas
particularmente na Itália, com a pandemia da Covid-29. As exortações papais,
nem progressistas nem conservadoras neste caso, mas plenas de compaixão,
solidariedade e defesa da vida, voltaram a ser respeitadas e acatadas, até
mesmo por não católicos.
As imagens das
celebrações da quaresma, sem a presença de fiéis, tiverem a força dramática de
emocionar audiências em todo o mundo, mais do que se ocorressem do modo
tradicional, repletas de público na praça e na
Basílica de São Pedro. Eis aí, ressalte-se também, uma vantagem dos
católicos sobre as outras igrejas: tem um líder reconhecido, de uma linhagem de
mais de dois mil ano. Além disso, o carismático pontífice já mostrou que é bom
de comunicação.
Talvez seja esse momento
de aflição da humanidade e do seu rebanho em particular, que ajude Francisco a
ganhar um novo alento para levar adiante um papado que se propõe renovador. Com
as bençãos do Espírito Santo, como creem os católicos.
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