Pela primeira vez desde que foi criada e justo quando
completaria 60 anos, hoje não teremos a encenação da Paixão de Cristo no Morro
da Cruz, a mais tradicional celebração da quaresma em Porto Alegre. Culpa da
pandemia. De minha parte, como sempre
acontece na Sexta-feira Santa reproduzo um episódio marcante, do qual fui testemunha,
na única vez em que participei do evento. Nem o coronavirus vai me impedir de
fazer novamente este relato.
Repórter de plantão na Sexta-feira Santa enfrenta uma
pauta obrigatória em Porto Alegre: a
cobertura da encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, também conhecida como subida ou procissão do
Morro da Cruz. O evento ocorre desde 1960, criado pelo padre Ângelo Costa, já
falecido, e cresce a cada ano, reunindo preferencialmente atores da comunidade.
Lá no final da década de 80 do século passado este que vos fala era repórter de
geral da Zero Hora, estava de plantão na Sexta-feira Santa e, claro, foi escalado
para acompanhar a encenação.
Lembro bem que era um dia quente no final de março e para
escapar das obviedades das coberturas tradicionais, decidi escolher dois ou
três personagens interpretados por atores locais para, por meio deles, montar a
minha matéria. Um dos personagens era balconista de uma ferragem
e intérprete do soldado romano que passava toda a encenação surrando,
com uma espécie de relho, um dos ladrões, que na vida real era motorista de
táxi.
É importante esclarecer que a encenação reproduz a Via
Sacra e suas 14 estações ou etapas do suplício de Cristo naquela
sexta-feira, há mais de dois mil anos. Só que alguns atores imprimem
demasiado realismo a suas interpretações e era caso do soldado
romano que, volta e meia, pesava a mão contra o pobre e, talvez, bom ladrão. O
infeliz olhava enfurecido para seu algoz, mas nada podia fazer durante a
celebração religiosa, mesmo que o sacana legionário revelasse perversa
satisfação em maltratar o companheiro de elenco. Sei lá se não deu o
troco após o evento. O soldadinho, um sujeito atarracado e malvado, bem que
merecia.
O mais inusitado ainda estava para acontecer naquela
encenação do século passado. O gran finale seria a
ascensão de Cristo, a partir da capelinha existente no platô do Morro da Cruz e
onde ocorria o final da procissão. O espetáculo no fim da tarde
previa jogo de luzes, uma trilha épica e aqueles fumacinhas de
shows, que acompanhariam a subida do filho de Deus feito Homem aos
céus. Um engenhoso sistema mecânico elevava o ator, com suas vestes brancas,
enquanto ele recitava lições de religiosidade. O ator já era o ex-vereador
Aldacir Oliboni, considerado a réplica moderna do Cristo, de acordo como
mostram as ilustrações que conhecemos.
Pois bem, lá estava o Cristo- Oliboni exortando os fiéis
quando, à esquerda do platô, começou uma movimentação frenética. “É ele, é ele
sim!”, repercutia a massa. Vocês estão autorizados a pensar que era
o próprio Cristo redivivo comparecendo ao seu velório, mas na verdade era quase
isso, guardadas as proporções e o período histórico. Quem surgia
triunfalmente era Sérgio Zambiasi no auge da sua popularidade. O Zamba foi
cercado e festejado pela multidão, enquanto Cristo subia ao encontro do
Pai, lentamente e quase de forma incógnita.
Oliboni ainda tentou atrair a atenção dos infiéis,
gritando palavras de ordem pelo sistema de som: “Cristo está
aqui! Cristo está aqui! Agora é o momento glorioso da subida
aos céus. Venham, venham, é aqui que está o Filho do Senhor! Demos glórias ao
Senhor!”, apelava o bom Oliboni. Inúteis apelos. A massa queria
mesmo era confraternizar – e fazer pedidos – a quem mais tinha a oferecer
naquele momento. Entre os consolos espirituais que Oliboni inspirava
e os materiais que Zambiasi poderia proporcionar a escolha do povo
pecou pelo pragmatismo, mesmo na Semana Santa.
Confesso que fiquei penalizado com a situação do Oliboni,
supliciado durante toda a subida do morro e justo no momento da sua consagração
como Cristo e ator o público o abandonava daquela forma, trocando-o por uma
situação tão mundana. De novo, mais de dois mil anos depois, a
história se repetia e o povo renegava Jesus Cristo. Insensível
público, mas depois fiquei pensando que fatos como o que presenciei talvez
expliquem porque Sérgio Zambiasi chegou a senador e Oliboni, mesmo sendo Cristo
por um dia, todos os anos, só conseguiu
assumir como deputado estadual, ainda assim vindo da suplência. Mas
aí já é outra história, nada a ver com a Semana Santa.
Um ótima Páscoa a todos.
Que o coelhinho seja mais generoso que a massa que renegou Cristo-Oliboni.
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