sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Toniolo Vive!

Onde anda o Toniolo, primeiro pichador massivo da cidade? Ainda hoje é possível observar em prédios, muros ou monumentos a assinatura dele: “Toniolo”, em letra caprichada e em tinta não lavável. Ou então, “Toniolo voltará”. Havia até uma desconfiança de que outros pichadores, tal a admiração que nutriam por esse ícone do vandalismo, estavam se aproveitando para disseminar pela cidade o nome do precursor da classe. Dividiam espaços, então, com uma outra pichação – “Cecalanto” –, que ninguém sabia do que se tratava. É bem verdade que havia uma uniformidade nos escritos do Toniolo. Registre-se também que em determinada época, diante da repressão a sua atividade transgressora, o nosso Toniolo passou a desafiar as autoridades, prometendo pichar prédios públicos como o Palácio Piratini. A memória me trai, porque não lembro se chegou a cumprir a ameaça. E assim o Toniolo transformou-se na própria lenda urbana e, como tal, muita gente desacreditava da existência dele.

Agora, posso revelar: eu convivi com o Toniolo. Eu e todo o bairro Petrópolis. Chamava-se Sérgio Toniolo, mas nós o conhecíamos por Aranha, apelido que pegou, acho eu, pela forma como caminhava, desengonçado como um aracnídeo. Pois o nosso Aranha era filho de uma tradicional família do bairro e irmão mais velho do Silvio, um craque varzeano, mas diferente do mano, meio campista dos bons, nosso personagem era um futebolista apenas mediano. Porém, tinha rasgos de jogador moderno, eis que era um lateral apoiador, quase um ala do futebol atual: recebia a bola, avançava em direção ao ataque, mas nunca mais voltava, deixando todo o seu setor vulnerável aos contra-ataques. Como tinha fama de brigar bem, embora dificilmente se exaltasse, a gente pegava leve com ele, até porque era bom papo e gente do bem.

Um dia Aranha fez concurso para a Polícia e passou. Foi lotado numa delegacia qualquer como inspetor ou investigador e tudo indicava que teria uma carreira promissora a serviço da segurança dos cidadãos. Mas o Aranha era do tipo invocado, que não levava desaforo para casa. E certa noite, depois de um churrasco da turma na casa de meus pais, saiu o Aranha a pernear, como de hábito, pela avenida Protásio Alves, até que foi abordado por uma dupla de PMs que fazia a ronda no bairro. Os brigadianos provavelmente desconfiaram do Aranha a vaguear solito àquela hora da noite. E ele era realmente uma figura, digamos, estranha. Andava rente as paredes, parecendo que escapava, sorrateiro, de perseguidores imaginários. Nesse cenário, acontece a abordagem dos brigadianos. Os perseguidores imaginários materializavam-se, na cabeça do Aranha, em forma de uma dupla fardada. É importante esclarecer que existia na época uma rixa muito forte entre Brigada Militar e Polícia Civil, porque recém fora extinta a Guarda Civil e a BM assumiu todas as funções de policiamento ostensivo. Ao interpelarem o Aranha, os PMs certamente desconheciam que estavam diante de um representante da corporação civil. Estabeleceu-se então um diálogo que reproduzimos agora, numa versão livre e ligeiramente dramatizada:

- Os documentos, cidadão.
- Que documentos? Documentos pra que?
- Vamos, mostra logo os documentos.
- Não vou mostrar.
- Que que tu tá fazendo a essa hora da noite na rua?
- Não te interessa.
- Então nós vamos te prender. Vai te explicar na delegacia.
- Vem, então, Pé-de-Porco.

Pé de Porco era ofensa grave aos integrantes da briosa BM. Diante do desacato, o primeiro brigadiano avançou em direção ao Aranha, que se safou com agilidade e sacou do seu 38 (ou seria um 32?). De arma em punho, desafiou os PMs:

- Vem agora, vem, que eu vou furar voces.

A versão mais difundida do caso dá conta que um dos brigadianos, cônscio do cumprimento do dever, não se intimidou e partiu pra cima do Aranha. Ouviu-se então um tiro que ecoou na noite petropolitana. O Aranha havia disparado seu 38 (ou 32) em direção ao brigadiano, quase à queima roupa. Antes do desfecho do entrevero, é preciso explicar um detalhe fundamental. Na época, o fardamento da Brigada incluía um cinturão largo, com uma grande fivela de metal. Pois, para sorte do Aranha e do PM foi na fivela que a bala ricocheteou. Os brigadianos não revidaram, até porque o que estava na cobertura, certo de que seu parceiro fora mortalmente atingido, foi socorrê-lo, permitindo que o atirador se escafedesse na escuridão.

Dez minutos depois, quem bate a porta do solar dos Dutra, na rua Ivo Corseuil? O Aranha, muito nervoso e gaguejante:

- Acho que matei um brigadiano lá na perto do Colégio Santa Inês. Preciso me esconder porque os Porcos vem atrás de mim.

E reproduziu o sucedido, que serve de base para essa narrativa. Em seguida, despediu-se e sumiu na noite de Petrópolis. O conflito com os brigadianos resultou em inquérito, o Toniolo foi punido, ficou afastado do serviço por um bom tempo e se desencantou com a atividade policial. Desde então ficou mais arredio do que nunca. Acredita-se que foi esse episódio e seus desdobramentos na carreira, que contribuíram decisivamente para que o Aranha se transformasse de agente da lei em transgressor da lei. Particularmente, nunca mais ouvi falar do bom Aranha.

Por isso, acho que esta na hora, antes que se perca nos descaminhos da memória, de resgatar a figura do Toniolo, elevando-a a dimensão de um Elvis, de uma Elis. A legião de admiradores deste pioneiro deve ficar marcada, não mais com pichações e sim com elegantes e coloridos grafites, para que todos os espaços disponíveis exclamem – “Toniolo Vive!”. De fato.

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