domingo, 11 de outubro de 2009

O Circo de Petrópolis: Noite de horror, dia de glória - 1ª parte

"Era tanta palhaçada que para virar circo só faltava a lona"

Era muito comum naquele tempo, entre os anos 60 e 70, os times varzeanos promoverem intercâmbio com equipes de outras cidades. A moda era mandar um ofício convidando o “co-irmão” para uma tarde de futebol “reunindo primeiro e segundo quadros”. Esse conjunto e mais os agregados lotavam um ônibus. E ainda havia a banda, com sua variedade de instrumentos de percussão, que também serviam para esconder cervejas e outros produtos surrupiados das biroscas de beira de estrada. Era inacreditável que os jogadores conseguissem entrar em campo depois de uma viagem regada a cerveja e destilados.

São inúmeras as histórias dessas incursões ao interior protagonizadas pelos esquadrões petropolitanos. Em uma delas, à localidade de Cancela Preta, que seria em Santo Antonio da Patrulha ou Maquiné, o campo tinha um inacreditável degrau na linha divisória. Naquela ocasião, tivemos que abandonar às pressas o local, após os jogos, porque alguém espalhou que o Luciano, nosso técnico, era o Dilamar Machado. Para entender a situação, o Dilamar era o Zambiasi ou o Gugu Streit da época e a TV não tinha a força e o alcance de hoje, para desmascarar a farsa. Foi um tal de gente pedindo coisas que a delegação começou a ficar preocupada. O pavor bateu mesmo quando uma senhora pediu ao falso “Delamar” que levasse seu filho de colo para criar. Aí decidimos que era hora de partir.

Mas a mais memorável excursão aconteceu para Santa Rita, um simpático distrito de Camaquã, a beira da Lagoa dos Patos. Como presidente do Tupi cometi a besteira de concordar que a viagem fosse na véspera porque haveria baile e estariam nos esperando. A turma estava assanhada e lá se foi a briosa delegação do Tupy, sábado à tarde, em busca de grandes emoções. O que ninguém imaginava era a freqüência e a intensidade dessas emoções. A delegação tinha de tudo: estudantes, trabalhadores, e um grupo, reduzido é verdade, que beirava a marginalidade. Junto ia o Mastsdorf, que apesar do sobrenome era afrodescendente e freqüentava o grupo na condição de apenado em serviço externo. Até hoje não sabemos o que o bom Mastdorf aprontara para passar uma temporada no Cadeião e também não nos importava. Mas prestem atenção neste personagem porque ele será importante mais adiante.

Tudo pronto para a viagem, decidi me prevernir e convidei o Telmo, irmão um pouco mais velho, para chefiar a delegação. Eu era um guri na época, tinha 17 ou 18 anos, e o Telmo, com seus 25 anos, impunha mais respeito, pelo menos era o que eu achava. A viagem até Santa Rita foi repleta de paradas para que a turma se abastecesse de cervejas, na proporção de uma por uma – uma comprada, outra afanada.

Chegamos à localidade no fim da tarde e já na descida do ônibus criou-se uma confusão: um dos nossos teria acertado um soco em um nativo. Era o primeiro ato de um fim de semana em que o pacato distrito, ligado a uma empresa produtora de arroz, viveria momentos de horror e pânico com a invasão da horda petropolitana. O episódio seguinte foi o desafio de três ou quatro rapazes nossos para uma disputa de bilhar na birosca local, valendo cerveja, é claro. O detalhe é que um dos nossos se encarregava de apagar no quadro negro os pontos do adversário, refazendo a matemática que daria direito as geladas.

De confusão em confusão, veio a noite e a tensão pairava no ar na pequena localidade. E ainda havia o tão esperado baile pela frente. E onde hospedar aquela turba? A maioria, já acostumada aos desconfortos da vida, dormiria no ônibus, ou nem isso, ficando acordada a noite toda. A verdade é que a pequena vila comportava uma hospedaria e alguns, não sei como, se ajeitaram ali. A integração foi mais rápida do que seria de se esperar e logo o Chiquinho, nosso zagueiro, apareceu na portaria vestindo um pijama do velho dono da hospedaria, que era perneta e até parecia gostar da brincadeira, partilhando o chimarrão com o visitante.

Começa o baile, num velho depósito de arroz e, para nossa surpresa, o local era dividido em dois espaços, separados por uma cerca de pallets. À esquerda ficavam os “morenos” e à direita, os brancos. A surpresa decorria da naturalidade como aquela discriminação era aceita entre os locais. Nossa delegação, indignada, decidiu solidarizar-se com os morenos e foi toda para o lado esquerdo do salão. Na verdade, era menos solidariedade e mais atração pelas moças amorenadas, em maior número do que as branquelas do lado direito. Só que ocorreu uma reação inesperada das lideranças negras locais, que exigiram a retirada dos seus domínios da cota branca de invasores. Criou-se então um impasse porque os brancos não queriam sair e os nossos negros, agora solidários com os brancos, não queriam ficar. Acho que o Telmo conseguiu contornar o impasse e ficou cada um no seu canto. O ambiente estava pacificado, por enquanto...

O caldo quase entornou de novo quando o Pezinho, um agregado de quase dois metros, decidiu participar dos lances do leilão de um porco assado, que desfilava pelo salão erguido acima da cabeça pelo leiloeiro. Não só participou como fez um lance absurdamente alto, que ninguém cobriu. Foi um alvoroço, com direito a palmas da platéia ao vencedor até que veio a contrainformação do Pezinho: “Dá mais uma voltinha com o porco que eu não tenho dinheiro”.

Ato seguinte, surgiu um baixinho com um 38 a mão e passou a ameaçar o Pezinho, acusando-o não de fraudar o leilão, o que já era grave, mas de desrespeitar as nativas.

(continua)

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