terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Circo de Petrópolis: Noite de horror, dia de gloria - Final

"Era tanta palhaçada que para virar circo só faltava a lona"

Resumo da postagem anterior: a delegação do valoroso Tupy, do bairro Petrópolis, excursiona para a localidade de Santa Rita, a beira da Lagoa dos Patos, promovendo confusões e levando pânico à pacata população local. Durante o baile na noite de sábado, entre outras ocorrências, um dos visitantes se envolve num episódio que poderá ter conseqüências dramáticas:

O Pezinho, um agregado de quase dois metros, decidiu participar dos lances do leilão de um porco assado, que desfilava pelo salão erguido acima da cabeça pelo leiloeiro. Não só participou como fez um lance absurdamente alto, que ninguém cobriu. Foi um alvoroço, com direito a palmas da platéia ao vencedor, até que veio a contrainformação do Pezinho: “Dá mais uma voltinha com o porco que eu não tenho dinheiro.”

Ato seguinte, surgiu um baixinho com um 38 a mão e passou a ameaçar o Pezinho, acusando-o não de fraudar o leilão, o que já era grave, mas de desrespeitar as nativas. A suspeita é de que o Pezinho, que era exímio dançarino, tivesse convidado a namorada do baixinho para rodopiar um bolero e quem sabe o que rolou durante a dancinha. O fato é que o baixinho apontava o reluzente 38 para a cabeça do Pezinho. A roda se abriu, saltou gente para tudo que é lado e foi pedida a intervenção da única autoridade policial da localidade, o cabo Moiano, da Brigada Militar. Mas o brigadiano não teve tempo de intervir, porque o Pezinho simplesmente não tomou conhecimento da ameaça. E com uma frase, afastou o revólver: “Tira essa merda daqui, se não eu mijo no cano”. Todos ficaram pasmos, esperando a reação do baixinho que, por prudência, foi afastado da confusão, mas marcou posição e saiu resmungando e xingando “esse pessoal da cidade que não respeita as moça de família”.

Segue o baile e, de repente, mais um lance inusitado numa noite em que tudo podia acontecer. A bandinha atacou mais um bolero e logo nos chamou a atenção a voz do novo crooner: era o Porquinho, outro agregado, um figuraço, que não apenas cantava bem, mas possuía um vasto repertório de boleros, tangos e sambas-canção. Lá estava o Porquinho, em cima do praticável que sustentava a bandinha animadora de brancos e morenos, emendando um sucesso atrás do outro. O episódio serviu para amenizar um pouco as estrepolias da turma de Petrópolis.

Mas eis que surge a notícia: O Chiquinho foi preso. O Chiquinho era um negro forte, zagueiro dos bons, que tivera uma passagem pelo futebol profissional da Bahia. Só que o time em que ele jogava veio fazer uma excursão ao Estado e de tanto ser goleado, se desfez em Porto Alegre e devolveu o Chiquinho a Petrópolis. Nessa excursão, ele era “vendido”como uma das atrações do nosso time, junto com o habilidoso Volnei - que havia atuado no Grêmio na década de 60, como Volnei II, além do Silvinho que era um excepcional jogador, mas que profissionalmente só tinha no currículo os testes que fizera num time da segunda divisão, em São Gabriel ou Santiago. O que importa agora é que o Chiquinho estava preso e fomos interpelar o brigadiano sobre os motivos da detenção. O simplório informou que fora desacatado, daí ter recolhido o elemento ao xadrez – sim, tinha um xadrez na localidade. Assim que o dia clareou, fomos visitar o Chiquinho na cela e encontramos ele dormindo tranqüilamente sobre um carrinho de lomba, que fazia as vezes de cama. Até hoje procuro uma explicação sobre o que fazia um carrinho de lomba naquelas planuras arenosas. O que nos intrigava também é por que o Chiquinho não reagira à ordem de prisão, ao que ele respondeu:

- Eu tava com sono e aqui pelo menos dá pra dormir mais tranqüilo.

A horas tantas da madrugada, um acontecimento poderia ter provocado, afinal, uma revolta da população local. Ouviu-se uma explosão em frente a hospedaria, atraindo muita gente. Um jipão, provavelmente de um dos caciques locais, fora sabotado: alguém colocou areia no tanque de combustível e quando o veículo foi ligado, o motor fundiu, provocando a explosão. Claro que toda a população da vila logo apontou os invasores como os responsáveis por mais aquela confusão. Mas o autor da sabotagem foi identificado: era um jovem local, que aproveitando a confusão reinante na vila, resolveu aprontar um ato de vandalismo. Dessa vez estávamos inocentes.

O dia afinal clareou e até o Chiquinho foi solto, não sem antes reclamar da precariedade da cadeia que nem café da manhã lhe oferecera. A manhã foi calma: todos estavam esgotados pela noite indormida e pelo excesso de bebidas, além disso precisávamos nos preparar para os jogos da tarde. Ao meio dia em ponto seria servido o almoço, um putchero que cozinhava em grandes panelões desde as 6 da manhã. A turma se jogou no sopão como um bando de esfomeados que, na verdade, era. E tudo regado a mais cervejas. Findo o almoço, Mastsdorf foi anunciado para discursar em nome dos visitantes. O negrão se levantou e deu início a um discurso memorável, inflamado, recheado de citações de autores que ninguém conhecia, o que lha garantia credibilidade e respeito entre os locais. Ele se superou quando destacou as qualidades do grupo visitante:

- Plêiade de universitários, jovens altaneiros, dignos representantes da mocidade de Petrópolis!

A discurseira beirava o constrangimento para nossa delegação, mas os nativos estavam maravilhados com aquele negro cheio de erudição. Mastsdorf sentiu que estava agradando e passou a elogiar as qualidades técnicas dos nossos jogadores. Citou primeiro o Volnei, “grande craque do nosso tricolor” – o Mastsdorf era gremista fanático -, o Chiquinho, “este excepcional zagueiro que importamos do futebol da Bahia”, o Silvinho, “fiquem atentos ao futebol deste moço, porque ele vai longe”, e exagerou ao elogiar as qualidades do nosso ponteiro Zé do Burro, um negrinho arisco que teria tido uma obscura passagem pelo Botafogo do Rio, onde era conhecido como “Ciscão”.

A citação do Volnei como ex-craque gremista – o Grêmio parecia ser dominante entre os torcedores locais – fez convergirem para ele todas as atenções. Seguiram-se pedidos de autógrafos, perguntas sobre o futuro dele – “estou estudando algumas propostas, talvez até volte para o Grêmio”, afirmou descaradamente -, enquanto os dirigentes locais desmanchavam-se em gentilezas materializadas por mais e mais cervejas. A comoção provocada pelo discurso do Mastsdorf fora tanta, que o orador local, pressentindo que não chegaria perto daquela verborragia entusiasmada, desistiu de falar e, acreditem, pediu ao mesmo Mastsdorf para substituí-lo nos agradecimentos. E o nosso orador deu mais um showzinho, sendo ovacionado no final. Era a consagração, o resgate dos melhores valores petropolitanos. Aquele matutos interioranos reconheciam agora a nossa superioridade moral, social e intelectual.

E chega a hora dos jogos. Na preliminar, o nosso segundo quadro, do qual participava como esforçado lateral-direito, levou um passeio do adversário. Se a memória não me trai, foi 3 x 1 e saiu barato. Nem poderia ser diferente: nosso time era uma baba e uma baba de ressaca. O jogo foi disputado sem outras anormalidades, exceto por um ataque epilético que acometeu nosso zagueiro, cujo nome vou preservar, ainda no primeiro tempo O cara não podia beber e pelo jeito foi além da conta na noite anterior. Mesmo assim, passado o treme-treme, voltou ao jogo porque na várzea é assim: ataque epilético não é motivo suficiente para substituição.

O grande momento se aproximava. De um lado, a legião de craques de Petrópolis, com seu uniforme do São Paulo – branco com listras vermelha e preta na altura do peito – terno conseguido pelo Mastsdorf, enquanto o segundo quadro jogava de verde e branco, mas não é o caso de explicar agora o porquê dessa diferença. Do outro lado, o aguerrido time de Santa Rita, sedento de vingança. Bola em jogo e o que se viu foi uma das mais extraordinárias exibições de uma equipe varzeana em todos os tempos. Comandado pelo Volnei e pelo Silvinho, nosso time mostrou técnica, garra, determinação, impondo novamente, agora no campo esportivo, a superioridade petropolitana. Foi uma goleada de 4 x 0, se a memória não me trai novamente, com uma atuação merecedora de aplausos da torcida que lotava o acanhado estádio local. “Como podem beber e farrear a noite inteira e jogar com tanta categoria”, “Nunca vimos nada igual aqui”, foram algumas exclamações ouvidas entre os nativos.

Ao final do jogo, a torcida invadiu o campo para celebrar os gigantes da bola, o verdadeiro dream team do futebol varzeano. E o festerê foi retomado, agora na copa do estadinho. Os dirigentes locais faziam questão de confraternizar – e pagar muitas cervejas – aqueles que tinham lhes proporcionado uma tarde inesquecível.

Era hora de voltar à civilização. Os dois motoristas do Expresso Maracanã, que havíamos contratado e estavam sumidos desde a chegada, reapareceram e, antes de iniciar a viagem de retorno, fizeram um alerta: “O ônibus está com problemas de câmbio e não podemos parar no meio do caminho”. Os espertos motoras sabiam com quem estavam lidando...

2 comentários:

  1. Flavio
    Mto bom que entraste na febre do blog, que em breve passará a ser velho, perdendo para o twitter (não sei se escreve assim). Prometo ser uma leitora. A julgar pelos teus textos no Coletiva, muito pano prá manga...abs

    ResponderExcluir
  2. É Marcinha, me entreguei, mas ainda resisto ao tal de twitter. 140 caracteres é pouco para minha verborragia. Obrigado pela leitura qualificada.

    ResponderExcluir