Quando pensava que tinha me livrado de encontros incômodos e reveladores, eis que sou abordado, em plena Feira do Livro, por aquele amigo de outras jornadas, cuja desventura amorosa relatei aqui em “Judas em forma de mulher”. Só para relembrar, esse amigo estava descornado porque sua amada o havia rejeitado em nome da adesão a um movimento social. “Fui trocado por uma ideologia”, lamuriou-se no encontro anterior.
Agora a abordagem se deu quando eu esgravatava um balaio de saldos e ofertas, a procura de algum título interessante. A busca cessou imediatamente porque ele me pegou pelo braço, talvez temeroso de que eu fugasse do encontro, e abriu o verbo: “Aquele teu outro amigo viajou. Que história é essa de que a Andi é travesti? Donde ele tirou essa idéia?”.
Para melhor entendimento do caso, o outro amigo já se identificou. Trata-se do renomado fotógrafo Eurico Salis que expôs sua tese, ao ler o texto original e daí foi gerado um segundo texto intitulado “Judas em forma de mulher na versão de ES”, tudo socializado aqui no ViaDutra e propagandeado nas redes sociais.
Como meu amigo estava um tanto exaltado, saímos do burburinho da Feira e fomos tomar um expresso. À mesa, contraditei que havia feito uma pesquisa em busca da verdade e recebi informações de fontes confiáveis de que a versão do Eurico tinha fundamento. “Isso é invenção de alguns desafetos, invejosos porque namorava uma pessoa bem mais jovem do que eu”, justificou. Confesso que aquele tratamento de pessoa, ao invés de moça ou mulher, me incomodou, mas não registrei meu desconforto.
A conversa seguiu animadamente unilateral. Ele explicou que alguns atributos físicos da tal pessoa realmente coincidiam com o perfil que fora traçado: era do tipo mignon, ligeiramente estrábica (o termo que usou foi “vesguinha”, que considerei carinhoso), com alguns dentes mais pronunciados, mas assegurou que o conjunto da obra era interessante, sensual e...feminino. Daí a fazer novas revelações sobre o relacionamento foi um pulo. Contou as escapadas no horário do almoço, no fim da tarde e aos domingos pela manhã, das vezes em que foi buscá-la no intervalo das aulas na faculdade rumando direto para o motel, reprisou o episódio do tórrido encontro no exterior – em Londres, confidenciou -, e enveredou para histórias mais picantes de extravagâncias sexuais cometidas ao longo do relacionamento.
A riqueza de detalhes começou a me perturbar e antes que a minha imaginação fosse mais uma forma de traição ao meu amigo, atalhei: “E agora?”. (Isso nunca falha para dar uma pausa às conversas de uma só via).
“Agora estou noutra. A fila anda e já me enredei em outro relacionamento, só não posso contar mais detalhes porque as duas são colegas e, apesar de tudo, não quero causar constrangimentos às partes”, respondeu, como se estivesse praticando um ato de nobreza.
Ato de nobreza até por ali, pois em seguida passou a revelar todo o seu ressentimento em relação a ex-parceria. “Fico imaginando como ela será no futuro. Certamente uma pessoa amargurada, faminta de carinho, solitária com seus cães, porque esse é o destino dos que trocam o amor por uma ideologia”.
Com sinceridade, afirmo que fiquei com pena da moça, ou pessoa, depois desse vaticínio cruel. Aproveitei a deixa e me despedi, voltando a Feira, agora à procura do livro “A arte de amar”, de Erich Fromm. Talvez nele encontre explicações para os enredos amorosos que teimam em me envolver.
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