Tive o privilégio e fui atormentado pelo fato de nascer e crescer numa família de muitos
irmãos, nove no início e oito na maior parte do tempo. Não há contradição entre
os dois sentimentos, quem viveu situação semelhante sabe disso, família grande é sempre uma relação intensa, mas garanto que
o resultado é mais positivo do que negativo.
Entre todas as manifestações que resultam desse
convívio o que me chama a atenção é uma espécie de código familiar que acaba se
estabelecendo naturalmente - expressões, frases, atitudes, estilos. Nossa mãe, Dona Thelia, por exemplo, usava um subterfúgio quando queria apoio para uma tese ou proposta, dirigindo-se preferencialmente às noras e as
mulheres visitantes: “Fulana, tu que és
uma pessoa esclarecida, o que tu achas de...?”
Não registro caso de pessoa esclarecida que não aderisse ao que propunha
a matriarca. Pior é quando ela fazia alianças de ocasião com as noras para
algum tipo de cobrança aos filhos, o que nos levava a lembrá-la :
- Mãe, nos é que somos teus filhos...
Ocorria também de assumir as queixas dos netos que
reclamavam das restrições ou cobranças dos pais e, é claro, era adorada pelos
pimpolhos – estamos falando de mais de
uma dezena de pequenos traquinas,
masculinos e femininos.
Dona Thelia era uma figura, um tanto debochada, acho que por herança de seu pai, o cafuso
alagoano vô Bastião misturado com a carcamana vô Amália , o que talvez explique
muita coisa do passado e das gerações futuras.
Num veraneio em Arroio Teixeira descobrimos que ela tinha afinidades com
Iemanjá, ou outra entidade do gênero, pois era a única pessoa que conseguia
resgatar das águas uma moça que ficava em transe cada vez que entrava no mar.
Ali pelos 50 anos começou a trabalhar na empresa de cortinas do meu irmão, e se
encontrou como estilista. Passou a fumar
nessa época, começou a viajar pelo Brasil e no fim da vida, já doente, aprendeu
a gostar de cerveja para combater as aftas que a atormentavam.
- Coisa bem boa,
agora entendo porque vocês gostam tanto de cerveja, regozijava-se
enquanto saboreava sua bebida bem gelada.
Já o coronel Dastro (na verdade, tenente-coronel
brigadiano, mas ele não recusava o título superior), nosso pai, era o
oposto. Sisudo, virou um católico
fervoroso depois de uma juventude de devassidão, sobre o qual evitava falar,
inclusive sobre como e quando ocorreu sua epifania. Consta que em Santa Maria (lá
estudava no colégio Marista), quando removeram as gurias da “zona” na região
central ele e o irmão Tarso seguiram juntos, em solidariedade, no caminhão que
transportava as moças. Tantas fez que
seu pai, Vicente Dutra, médico e
prefeito de Iraí, decidiu alistá-lo nas tropas que combaterem os paulistas na
Revolução Constitucionalista de 1932. Ele tinha apenas 16 anos!
O velho era um ambientalista nato, sabia tudo de
plantas, isso antes que o termo sustentabilidade fosse inventado. Nos pomares e hortas que cultivava o adubo
sempre era orgânico, resultado do reaproveitamento do lixo doméstico. As futuras noras e genros só ganhavam acesso
livre à morada dos Dutras se o coronel os convidasse para conhecer sua produção
agrícola. Os candidatos a genro tinham ainda as placas dos seus carros anotadas
e lá ia ele buscar informações sobre o sujeito. Quando o assunto era sensível, advertia
: “Assunto escabroso” ou então desviava a conversa afirmando “as mulheres
gaúchas são muito bonitas”, o que até
hoje estamos sem entender o que queria dizer.
Assim, com esse DNA viramos uns tipos rústicos, tudo
virou folclore e é lembrado com uma ponta de melancolia na confraria que reúne
os irmãos. Agora somos seis, mas as histórias são sempre as mesmas, isso quando
não estamos levantando assuntos escabrosos dos ausentes, aqueles que certamente
não são pessoas esclarecidas.
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