O livro de lombada vermelha se sobressai na prateleira empoeirada. “Encontro Marcado”, de Fernando Sabino, foi uma das primeiras leituras da adolescência, que agora retorna nesse mergulho nostálgico na velha morada destinada a virar escombros. È um encontro marcado que reúne parte do clã para dividir o espólio da casa, alguns móveis em bom estado, quadros de relativo valor, mas não há disputa, porque o mais valioso está disperso entre a papelada e cada um sabe o que lhe cabe.
Um recorte de suas vidas, zelosamente preservado pelo patriarca, está registrado em fotos, documentos, lembranças diversas dos tempos em que o casarão abrigava toda a filharada e a geração seguinte, e atraia os agregados que cada um trazia e que não eram poucos. E havia ainda espaço para um clube de paraquedismo, a sede de um time de futebol, os estúdios de uma rádio clandestina, a redação do jornalzinho mimeografado , as confrarias que iam se formando de tempos em tempos e até um improvisado cassino de carteado nas tardes de sábado.
O galpão dos fartos almoços dominicais da matriarca e de memoráveis churrascadas é o cenário do descarte do que não vai ser preservado. È uma tarefa difícil porque o que sobreviveu por tantos anos algum valor teria no futuro. Mas como saber o que se passava na cabeça do patriarca quando selecionou aqueles itens para que agora eles tivessem dúvidas? Como explicar, por exemplo, as duas gavetas cheias de moedas e cédulas de todos os valores, verdadeiro acervo do histórico monetário do país? Em algum período aquele dinheiro teve valor, mas hoje, como a maioria dos papéis distribuídos sobre as mesas, o valor que permanece é o que cada um lhe confere pelas lembranças que evoca.
E as lembranças são tantas que se permitem um momento para rememorar causos passados, como o barraco entre cunhados por causa de um gato, ou da menina que mordia as primas e os cachorros, ou, ainda, do menino de sorriso maroto que se foi tão cedo. Houve outras perdas ao longo do tempo, mas não há lamentações e quase se repete o clima festivo do passado, que os reunia pelas afinidades herdadas. Agora, como acontecia antes, os ausentes são difamados.
No pomar, a velha parreira que era a extensão natural das reuniões no galpão, agora é estéril. Mas a bergamoteira dá frutos abundantes, a mangueira e a goiabeira também ficam carregadas, cada uma a seu tempo. A analogia logo vem: a parreira é o que passou, mas há uma renovação e frutos vigorosos para o que foi plantado com boa semente e criou raízes fortes. È um encontro de comunhão e celebração da vida que segue.
que lindo, papi! uma pena que não tenhamos herdado a parreira...
ResponderExcluirDuas palavras para este texto: MARA VILHA.
ResponderExcluirEu estava lá.
Flavio, só tu para criar esta síntese tão fantastista.Éramos felizes e sabíamos
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