Encontro na mesa ao lado o Saulo Totta, parceiro
chegado a grandes e pequenas aventuras e desventuras. Conversa vai, conversa vem, o Totta emenda
uma história de sua passagem por Santa Maria, quando era um irrequieto
adolescente em busca de novas emoções. Nosso amigo juntou-se a um bando de
iguais, cuja maior transgressão era fumar maconha. Estamos falando do final da década de 60 do
século passado. A cannabis sativa não
tinha a aceitação de hoje, quando é comum sentirmos nas ruas e nas praças cheiro característico
da erva sendo consumida. E na
conservadora Santa Maria de então quem fumava maconha era marginal.
- Chispa daqui maconheirada! lembra Totta de ouvir
dos donos de boteco quando a gurizada, cheia de constrangimentos,
procurava o papel especial para enrolar
unzinho.
Mas os neo-maconheiros não se entregaram e passaram
a raspar o invólucro interno dos maços de cigarro, o chamado “ourinho”, até que
ficassem uma camada de papel bem fina, pronta para receber a erva. Dava uma trabalheira danada, mas não existem
barreiras para uma juventude criativa.
Alguns pegas depois, a turma foi brindada com a
viagem de uma tia velha de um dos seus mais ativos membros e isso significava
um enorme apartamento disponível por um fim de semana inteiro. Apesar do tempo decorrido, Totta evita detalhar o
que aconteceu naquele espaço num fim de semana trepidante. Entretanto, revela que foi naquela ocasião que recebeu uma “ verdadeira
inspiração dos céus”.
Foi assim: curioso como só ele, Totta fez um levantamento
minucioso de todas as peças do amplo imóvel, até chegar ao quarto da
senhorinha. Era uma peça decorada sobriamente, de acordo com o perfil da
ocupante: uma cama de solteiro com uma
colcha mais vistosa, um guarda roupa de tonalidade escura, uma cômoda também escura e a mesinha de cabeceira, suporte do
inevitável abajur e do relógio despertador, dos antigos com duas
campainhas. E, em destaque sobre a
mesinha, uma Bíblia, a Bíblia Sagrada,
volumosa, colorida e de capa dura. “Uma preciosidade”, pensou Totta, que movido por sua
incomensurável curiosidade começou a folhar o livro, detendo-se aqui e ali num
versículo, embebendo-se das exortações bíblicas. Foi então que, manuseando aquelas páginas de
fino e precioso papel , ocorreu a inspiração dos céus. “Pessoal, pessoal , olha aqui o que eu achei”,
convocou.
É difícil descrever a faceirice do pessoal, explica ele,
diante da solução para o recorrente problema de enrolar unzinho. A partir de então, o livro sagrado ficou sob a guarda do
sobrinho da dona da casa que, para não
dar na vista, destacava página por página começando com o Antigo Testamento e o suficiente para uma rodada.
- Só eu fumei meio Antigo Testamento e mais um tanto
do Evangelho de Mateus e outro pedaço do Atos dos Apóstolos, revela Totta, hoje
ex-atleta da erva.
Mas a revelação é feita com indisfarçável nostalgia,
enquanto sorve mais uma dose do seu Cabernet.
“Um tinto encorpado... é só o que me resta”, resmunga, esperando nossa careta solidariedade.
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