sábado, 6 de dezembro de 2014

Histórias da mesa ao lado: maconha bíblica

Encontro na mesa ao lado o Saulo Totta, parceiro chegado a grandes e pequenas aventuras e desventuras.  Conversa vai, conversa vem, o Totta emenda uma história de sua passagem por Santa Maria, quando era um irrequieto adolescente em busca de novas emoções. Nosso amigo juntou-se a um bando de iguais, cuja maior transgressão era fumar maconha.  Estamos falando do final da década de 60 do século passado.  A cannabis sativa não tinha a aceitação de hoje, quando é comum sentirmos  nas ruas e nas praças cheiro característico da erva sendo consumida.  E na conservadora Santa Maria de então quem fumava maconha era marginal.

- Chispa daqui maconheirada! lembra Totta de ouvir dos donos de boteco quando a gurizada, cheia de constrangimentos, procurava  o papel especial para enrolar unzinho.

Mas os neo-maconheiros não se entregaram e passaram a raspar o invólucro interno dos maços de cigarro, o chamado “ourinho”, até que ficassem uma camada de papel bem fina, pronta para receber a erva.  Dava uma trabalheira danada, mas não existem barreiras para uma juventude criativa.

Alguns pegas depois, a turma foi brindada com a viagem de uma tia velha de um dos seus mais ativos membros e isso significava um enorme apartamento disponível por um fim de semana inteiro. Apesar do tempo decorrido, Totta evita detalhar o que aconteceu naquele espaço num fim de semana trepidante.  Entretanto, revela que foi  naquela ocasião que recebeu uma “ verdadeira inspiração dos céus”.

Foi assim: curioso como só ele, Totta fez um levantamento minucioso de todas as peças do amplo imóvel, até chegar ao quarto da senhorinha. Era uma peça decorada  sobriamente, de acordo com o perfil da ocupante:  uma cama de solteiro com uma colcha mais vistosa, um guarda roupa de tonalidade escura,  uma cômoda também  escura e a mesinha de cabeceira, suporte do inevitável  abajur  e do relógio despertador, dos antigos com duas campainhas.  E, em destaque sobre a mesinha,  uma Bíblia, a Bíblia Sagrada, volumosa, colorida e de capa dura. “Uma preciosidade”,  pensou Totta, que movido por sua incomensurável curiosidade começou a folhar o livro, detendo-se aqui e ali num versículo,  embebendo-se  das exortações bíblicas.  Foi então que, manuseando aquelas páginas de fino e precioso papel , ocorreu a inspiração dos céus.  “Pessoal, pessoal , olha aqui o que eu achei”, convocou.

É difícil descrever a faceirice do pessoal, explica ele, diante da solução para o recorrente problema de enrolar unzinho.  A partir de então,  o livro sagrado ficou sob a guarda do sobrinho  da dona da casa que, para não dar na vista, destacava página por página começando com o Antigo Testamento e  o suficiente para uma rodada.

- Só eu fumei meio Antigo Testamento e mais um tanto do Evangelho de Mateus e outro pedaço do Atos dos Apóstolos, revela Totta, hoje ex-atleta da erva.

Mas a revelação é feita com indisfarçável nostalgia, enquanto sorve mais uma dose do seu Cabernet.  “Um tinto encorpado... é só o que me resta”, resmunga, esperando nossa  careta solidariedade.



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