terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Olhar aguçado no Calçadão

 *Publicado em 11/01/2022 em coletiva.net

Já me proclamei como observador atento de cenários, provável legado do tempo de repórter. Pois bem, continuo praticando diariamente a observação de tudo ao redor e agora virei um Editor dos perfis humanos que encontro diariamente nas caminhadas matinais pelo Calçadão de Ipanema. A designação de Editor, por conta das legendas com que  cada passante é agraciado, partiu  de um companheiro dessas caminhadas, mais recatado, porém, em verbalizar o que lhe passa na cabeça quando cruza, por exemplo, com a Ninfeta, que faz da jornada pelo calçadão uma passarela de moda fitness. Diferente dele, daqui a pouco ligo o modo inconveniente, vou interpelar a moça e dizer da minha aprovação as suas vestimentas esportivas. Parece que já estou ouvindo a resposta.

- Brigado, tio!

Segue o desfile de tipos, masculinos e femininos, cada um com suas peculiaridades, a me provocar e estimular em busca de rótulos e legendas para eles. Tem a Magrela Tatuada, de passo firme e cachorro a tiracolo.  Em seguida, vem a Dupla de Irmãos, que parecem ter saído das histórias em quadrinho, andando com seu passo cadenciado. Mais adiante, cruzo com a Moça de Belas Pernas Compridas, mas de jeito desengonçado, que cumprimenta um dia sim e outro não. Agora aparece o Magistrado, de impecável abrigo branco e em animada conversa com sua parceira. Embora seja cedo da manhã é freqüente a presença dos Maconheiros do Pedaço, presença, aliás, sentida à distância. É freqüente, também, um Bombado Exibido passar correndo, desviando da Tribo da Cachorrada, daqueles que são guiados pelos animais e que não são poucos, os pets e os guiados. Ah, e tem o Amalucado Inofensivo, que cumprimenta a todos, sempre de chinelos de dedo porque tem pés tamanho 45, o que restringe os doadores de sapatos e tenis. Enfim, é uma fauna e tanto, e fico por aqui.

Ao descrever esses tipos me veio a memória a história que já contei em outra ocasião, do caminhante que vinha chamando minha atenção em especial.

 Aparentando mais de 70 anos, abrigo fora de moda, chapéu enterrado na cabeça e radinho na mão, ele cruzava por mim revelando incomum interesse no olhar.  Mal nos cumprimentávamos com um leve aceno de cabeça, mas aquela figura me instigava a imaginação. Por que o senhor idoso, de caminhar arrastado, cruzava daquela forma o meu caminho?

 

Foi então que caiu a ficha:  o velhinho era eu amanhã, eu retornando do futuro, talvez trazendo   alguma mensagem do porvir, tentando estabelecer contato.  Fiquei impactado com a revelação e enternecido com o meu clone setentão.(eu tinha 60 anos à época;faz tempo!)  Se havia alguma dúvida do que significávamos um para o outro, o radinho companheiro foi a prova das nossas identidades.  E mais aquele jeito, aqueles olhos claros...

 

Não me perguntem o que tudo isso significa porque perdi o bom velhinho de vista. Teria passado desta para uma melhor?  Seria essa a mensagem que ele tentava me passar, dando  indicações da minha finitude?  Como me arrependo de não ter dialogado com o outro Flávio. Quanta informação e conhecimento deixei de absorver!  Pensando bem,  talvez tenha escapado de saber um montão de infortúnios e outro tanto de sacanagens.  Acho que fiquei no lucro, mas se o velhinho surgir de novo na minha frente passarei a acreditar em reencarnação.

 

 

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