segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Mia, cidadã do mundo


*Publicação nesta data em coletiva.net                                        

            O casal adotante com Mia, em Girona, Espanha e Mia fazendo festa a Picaso.

O  professor e consultor Arno Arnt, indiscutível cidadão do bem, faz uma previsão inusitada, a de que a maior mãe de todas as batalhas futuras será entre os proprietários de cachorros x proprietários de gatos. A justificativa é pela importância que os pets assumiram na vida das pessoas e para os negócios de uma cadeia produtiva que não para de crescer.  Ele, inclusive, já tomou partido: perfila-se com os  felinos, solidário com os bichanos que tem em  casa. De minha parte, acho que vou ficar isento nessa disputa humananimal, se me permitem a invencionice linguística.  

Nada tenho contra os  pets em geral. O que venho observando é que  cães e gatos aprenderam a  respeitar os territórios uns dos outros, caso contrário haveria  mordidas e arranhões pra valer e, por isso, desde  que não sejam incomodados nas suas pachorras, não ligam a mínima se seus proprietários são potencialmente  beligerantes. Conheço famílias que abrigam as duas espécies, sem problemas.

As constatações são  lastreadas também na minha relação respeitosa e distante com os pets da família, diferente deles que procuram ser próximos e amistosos comigo.  A família é essencialmente cachorreira, mas já apareceu todo o tipo de bicho residente por aqui, do peixe 101 da Mariana, adotante também do coelho Lênin (quando já revelava pendores esquerdistas) e de uma tartaruguinha – que conseguiu fugir! –, mais o gato errante Peter e dois pintinhos recebidos de brindes em uma feira de filhotes em tempos menos sustentáveis e que viraram aqueles galináceos brancos e acabaram na panela de uma  assistente da casa.

Ah, os cachorros da Osmar Meletti! Em tempos mais recentes, de um ou outro filho,  tivemos a carismática e esperta vira-latas Penélope, o collie Marley, desajeitadamente imponente, que convivia soberano com os que reinavam sozinhos na casa, a yorkshire Felícia  e seu filho Godo (corruptela de Gordo); o primo Bento, um nervosinho pincher preto como seu antecessor Chamã, este mais dengoso, que já foi se encontrar com o Marley e a Penélope no ceuzinho da cachorrada. 

Eis que aparece um novo personagem nessa história. Certo dia, do terreno baldio ao lado da casa começaram a surgir  lamuriosos gemidos caninos. As tentativas de aproximação se mostravam inúteis, ele sempre escapava mato adentro,  mas as lamúrias não cessavam. Deu para observar que era um bicho de bom tamanho, de pelo dourado, meio collie, meio vira-lata e com uma coleira sem qualquer outra referência. O cão, pelo jeito, se perdera ou fora abandonado. Estava assustado, carente e, por isso, arisco.

Com oferta de comida e gestos amistosos, a Santa conseguiu, afinal, amansar e atrair o bicho. Era uma cadela, que foi rebatizada como Mia, a personagem principal dos livros O Diário da Princesa (papel de Anne Hathaway no cinema). As tentativas para encontrar os proprietários foram inúteis e parecia haver uma torcida para que isso não ocorresse, creio que também de parte da nova hóspede, cuja principesca presença foi tolerada pelos que continuavam donos do campinho, a Felícia e o Godo.  A Mariana, a mais cachorreira da família, decidiu adotar a Mia temporariamente e levá-la para o seu apartamento, até que aparecesse alguém interessado em ficar com a cadela em definitivo. Entretanto, foi amor ao primeiro pernoite e a adotante e o marido Diego  não desgrudaram mais da “filha”.

Nem os planos do casal de morar na Europa foram alterados pela nova parceria, mas exigiu uma série  de trâmites burocráticos e equipamentos para viabilizar a companhia dela na viagem, primeiro num giro em Portugal e depois rumo à estada na Espanha.

Hoje, Mia é uma cidadã do mundo. Lembro que fui ao aeroporto na despedida da minha filha e do marido  para a Europa e lá estava a cadela com todo o aparato  exigido. Outros três cães, de raças variadas, viajariam no mesmo voo da TAP. Imaginem a zorra no aeroporto, mas a Mia se portou com muita dignidade e faceirice, enquanto o resto da cachorrada dava vexame.  Eu diria que ela tinha consciência da origem monárquica do seu nome e que passaria a conviver com outras culturas e outras relações nos destinos escolhidos pelos “pais” dela.

E foi assim que a Mia moldou a vida do casal  na estada em Girona, na Catalunha. Toda a movimentação de ambos ficou condicionada ao bem-estar do outro morador, no caso, moradora. Só estabelecimentos pet friendly passaram a ser frequentados. Durante a pandemia, uma das poucas atividades permitidas fora de casa era um passeio com Mia.  Quando nossa delegação familiar esteve na Espanha, em janeiro deste ano, as netas mataram a saudade da cadela, à qual tinham se afeiçoado quando ainda era brasileira e ela retribuiu o carinho da petizada. Foi um reencontro de antigas e sólidas amizades. Mia sempre gostou muito de crianças e ia ao encontro delas, pronta para interagir, nos seus passeios nos parques e praças em Porto Alegre.

Agora, ela foi acompanhar a Mariana e o Diego em mais uma etapa da saga europeia. Estão em Málaga, no Sul da Espanha, muito bem instalados e onde Mia desfila garbosamente seu charme entre os moradores locais e os turistas que reapareceram. Nada mal para quem foi  encontrada perdida e chorosa num terreno baldio e que agora, se pudesse falar, diria que é frontalmente contra uma hipotética batalha entre donos de cães e gatos. Na sua sereníssima postura, Mia prefere cumprir a nobre missão da sua raça, a de ser o melhor amigo do bicho homem, tão carente de fraternidade e companheirismo nestes tempos de pandemia.
 

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