segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Plágio às avessas

* Publicado nesta data em coletiva.net

Houve um tempo em que as redes sociais estavam infestadas de textos atribuídos a autores consagrados que jamais escreveram o tal texto. As vítimas mais frequentes para os fakes text eram Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector. Tinha até  gente talentosa envolvida  nesse processo, porque algumas produções  poderiam mesmo passar pelo estilo dos imitados

Mais intrigante ainda são os casos de textos atribuídos a vários autores. Dois deles considero clássicos, um dos quais diz respeito a esta ideia:

“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei.(...) No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar”.

A autoria desse texto contra o nazismo, na forma completa, é atribuída preferencialmente ao dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), mas também ao poeta russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930), ou ao brasileiro Eduardo Alves da Costa, que publicou em 1968 o poema “No caminho, com Maikóvski”, do qual esta segunda estrofe originou parte  da confusão:

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na Segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada. 

Mais tarde, a autoria foi atribuída também ao nobel colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) e ao psicanalista austríaco Wilhelm Reich (1897-1957). Note-se que já são cinco não-autores. 

Na verdade, o autor do libelo original contra a omissão é o teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984), que chegou a flertar com o nazismo nos primeiros tempos, mas ao descobrir quem era Adolf Hitler e o que ambicionava, tornou-se o inimigo público número um do Führer, passando sete anos preso em campos-de-concentração. Existem diferentes versões da citação, porque Niemoller usou-a de formas variadas e de improviso, em diferentes ocasiões para diferentes públicos, mas a primeira versão é aceita como sendo esta:

Quando os nazistas vieram buscar os  comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.

Quando prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata.

Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista.

Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.

Quando eles vieram me buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.

O outro texto clássico de multiautoria  é esta preciosidade: “Sonho que se sonha só é apenas sonho; sonho que se sonha junto é o começo da realidade”.  A busca pela autoria  passa  por dom Helder Câmara, pelo  beatle Johm Lennom,( “A dream you dream alone is only a dream. A dream you dream together is reality".), com uma versão da mesma frase como sendo da  mulher dele, Yoko Ono, e chega ao Maluco Beleza,  Raul Seixas, por causa da  música Preludio, cujo único verso é este:

 

Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só
Mas sonho que se sonha junto é realidade

A sentença é um apelo para o compartilhamento, uma mensagem atual como nunca, que, na verdade, está presente originalmente na obra do  espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, considerada a melhor do gênero ficção de todos os tempos.

Polêmicas à parte, volto ao tema do plágio às avessas, para dizer que não consigo entender por  que alguém, em determinados casos,  abre mão de um bom texto, de  uma tese defensável, de uma crítica legítima, para repassar a autoria a outrem.  Deve ser um autor  com baixa autoestima, tanto assim que nem ele mesmo acredita no que escreve. E, claro, tem aqueles que precisam validar suas ideias e procuram quem tem credibilidade e reconhecimento público para isso e,  ainda e pior, os mal-intencionados  que querem transferir   para os outros alguma proposta indigna para assim fazê-la transitar. Estes últimos, talvez, até sejam a maioria.

Não tenho baixa estima, não me inscrevo entre os maldosos, nem entre os que buscam respaldo na credibilidade alheia.  Ao contrário, gostaria, numa boa, de ser imitado, parodiado, falsificado.  Seria a consagração, a glória, como autor. Só dos maiorais é usurpado o prestígio. Pior é a indiferença dos fakers.  Prometo que não vou recorrer ao Alexandre de Moraes,  faria apenas uma denúncia tímida para faturar algum notoriedade em cima do episódio, mas depois calaria, esperando mais e mais créditos literários indevidos.  Talvez até assumisse a autoria de alguns.  Venham, então, mas caprichem.

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