* Publicado em coletiva.net em 24/08
Nas minha quarentena investi parte do tempo ocioso para assistir às séries oferecidas pelas
plataformas de streaming. Acabei descobrindo algumas preciosidades, como a
série A Era dos Dados (Connected), recém lançada pelo Netflix. São seis
episódios que tratam desde a importância
do cocô na geração de soluções às relações entre as nuvens dos céus e a nuvem
que armazena nossas mensagens; ou sobre como a poeira do Saara chega à Amazônia
até o lado positivo das armas nucleares.
A apresentação é do jornalista
científico Latif Nasser, um magrão cabeludo e desajeitado que conduz os
episódios com muito bom humor. Doutor em História da Ciência em Harvard, ele é
diretor de pesquisa do programa Radiolab da rádio pública de Nova Iorque, e já
assinou outras produções do gênero, sinal de que A Era dos Dados, ao investigar
as incríveis conexões entre os humanos, nosso planeta e o universo, está em boas mãos e ótimo cérebro.
De todos os episódios, o que me
deixou mais intrigado e sedento de informações complementares foi o Dígitos,
que me revelou a Lei de Benford e as implicações dela no nosso cotidiano.
Também chamada de Lei do Primeiro Digito, Lei de Newcomb-Benford ou Lei dos
Números Anômalos, ela afirma que em muitas coleções de números o primeiro
dígito significativo será pequeno. Mais
ainda: a distribuição mostra que o dígito 1 tem 30,1% de chances de ser
o primeiro à esquerda em qualquer lista de números tirados de um conjunto
aleatório. Na sequencia, o 2 aparece com 17,6%, o 3 com 12,5%, assim por diante[FD1] , até o 9 com apenas, 4,6%
Quem fez as observações iniciais
sobre o fenômeno foi o astrônomo americano Simon Newcomb, por volta de 1881, ao
notar que as primeiras páginas dos livros para realizar cálculos logaritmos,
eram muito mais utilizadas – estavam mais sujas - do que as últimas. A paternidade da lei,
porém, ficou com físico Frank Benford que resgatou o fenômeno
em 1938, ao coletar mais de 20 mil observações,
dentre eles áreas de superfícies de 335 rios, tamanho de populações de
3.259 cidades dos EUA, 308 números contidos na revista Seleções e 418 taxas de
mortalidade. Todas seguiam a mesma
distribuição, privilegiando os números mais baixos como os primeiros dígitos
significativos (zero fora). Benford utilizou a escala logarítmica para
interpretar o comportamento observado, só não me atrevo a explicar como isso
ocorre – desde os tempos ginasiais, logaritmo não é o meu forte
Sabem o que tudo isso significa?
Muita coisa.
Fraudes contábeis podem ser
detectadas com a aplicação da Lei de Benford, que também já serviu de evidência
em casos criminais nos EUA e em denúncias de manipulação e análise de dados
eleitorais. Aplica-se, inclusive, em processos eleitorais como o brasileiro,
validando os resultados da urna eletrônico. Na prática, já foi utilizada para a
conferência de dados macroeconômicos, como os apresentados pela Grécia à União
Europeia para entrar na Zona do Euro e
que se mostraram provavelmente fraudulentos; para análise e comprovação,
na Europa, de irregularidade nos preços, antes e depois da introdução do euro; para
constatação de fraude científica em artigos publicados e para análise de dados
do genoma. No Brasil, de grandes e sucessivos escândalos envolvendo sobrepreço
em obras públicas, a Lei pode ser utilizada
com muita eficácia pelo TCU nas análises de preços nas auditorias dessas
obras. Assim, um resultado numérico manipulado,
fraudado, ou antinatural é descoberto imediatamente pela aplicação da Lei
de Benford.
Lamento informar, entretanto, que ela
não serve para acertar os resultados das loterias, porque os números são
sorteados e, portanto, aleatórios. Gostaria
de saber também se a Lei de Benford se aplica, para confirmação, ao conjunto de
números em que se transformou a pandemia da Covid-19, mas meus conhecimentos
matemáticos não chegam a tanto.
Já
para o caso das notícias falsas nas redes sociais e daqueles vídeos manipulados,
mas realistas, a lei apresenta resultados surpreendentes, mas isso requer
desdobramento em outra coluna.
Por enquanto, registro, reconhecido, o que aprendi com a Lei de Benford
e o episódio Dígitos, de A Era dos Dados:
- a matemática rege o universo;
- não existe acasos na matemática;
- a matemática é o melhor antidoto contra fraudes;
- estamos mais conectados uns com os outros do que imaginamos.
- descobri, afinal, pelo menos uma utilidade para os logaritmos, que infernizavam minha vida de
estudante.
Voltaremos.
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