- Ela é bonita, mas a panturrilha...
Aquela sentença, pronunciada com voz grave, quase lamentosa,
teve o efeito de paralisar todas as outras atividades à mesa. Os entrecots, as
picanhas na chapa, as batatinhas, as massas e demais iguarias ficaram
livres momentaneamente do assédio voraz dos garfos e das facas. Um valor mais
alto se alevantava. Aquela frase, aquela
entonação, aquele parceiro, que revelações ainda estavam por vir?! Todos os
olhares se dirigiram para o autor da sentença, sentado à cabeceira da mesa, a
mirar melancolicamente para a musa televisiva de panturrilhas imperfeitas.
- O que tem as panturrilhas dela?, perguntaram quase em coro
os outros bandalhos, companheiros de confraria.
Ligeiramente constrangido, mas sem condições de rebobinar o
tempo e deletar a revelação surpreendente, ele teve que admitir que seu fetiche
em relação as mulheres eram as panturrilhas das moças. Um súbito entusiasmo tomou conta do parceiro,
que passou a discorrer com naturalidade e riqueza de detalhes sobre aquela
parte da anatomia humana, a popular batata da perna, aqui considerado o naipe
feminino. Amava panturrilhas bem torneadas, sem muita musculatura, mas firmes o
suficiente para resistir aos afagos mais enérgicos e merecidos. Não sabia
quando o fetiche havia começado, mas contou que passou alguns vexames diante de
parceiras cujas panturrilhas não estavam de acordo com seu padrão estético.
“ Uma ou outra vez fiquei devendo”, informou à mesa atenta, preferindo um eufemismo para a tradicional
brochada. E nesse ponto esclareceu suas restrições à bela da telinha:
- Encontrei com ela no shopping e descobri que a panturrilha
dela, da dobra do joelho até o tornozelo, é uma coisa só, massuda, sem curvas
ou saliências, enfim, sem qualquer atrativo ou erotismo...
Cruelmente os confrades se divertiam com o relato, mas eu que sou um
poço de sensibilidade, observei que o parceiro agora estava com os olhos marejados, como criança
que descobre que o desejado brinquedo apresentava um defeito. Ele recebeu bem o meu olhar de solidariedade
e, mais animadinho, disparou outra frase bombástica:
- Agora só me resta a massagem tântrica...
Todos na mesa estacaram novamente. Aquele almoço prometia novas e trepidantes
surpresas.
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