* Publicado originalmente em 21/10/2009
Sou fascinado por aqueles retalhos de conversa que ouço nas caminhadas matinais por Ipanema ou quando circulo pelo Centro da cidade. Para mim, a mais instigante das frases incompletas, ao cruzar pelos outros passantes, é “...aí eu disse assim pra ele...”. Juro que me dá vontade de voltar e interpelar os responsáveis pelo diálogo: “E aí, o que foi dito?”. Mas fico constrangido e preocupado com a reação diante da interferência indevida naquele momento de comunhão e intimidade, ainda mais quando são mulheres. Acabo me torturando por não saber o significado e a continuidade do diálogo.
Essa obsessão para compartilhar conversas alheias me acompanha há anos e cheguei a sugerir ao Nilson Sousa, meu cronista preferido, que produzisse um texto sobre o tema, ele que é um contumaz caminhante da zona sul. Claro que o talentoso Nilson, como sempre, escreveu uma crônica irretocável que tentei recuperar, sem sucesso.
Vida que segue, outro dia no supermercado flagrei o desfecho da conversa da menina do caixa com uma colega. “Aí ela me contou que...” e baixou o tom de voz, a infeliz, tornando inaudível para mim o que teria contado interposta pessoa. Depois, novamente em voz alta, acrescentou: “Chocante, não?”. Eu quase esgoelei as duas, eu quase implorei de joelhos que me revelassem o chocante segredo sussurrado, mas me contive. O que a pessoa teria dito? Quem era o interlocutor da incisiva sentença? O que aconteceu depois? A angústia por não ter respostas às indagações das meias conversas me atormenta pelo restante do dia. Mas como tudo na vida tem seu lado positivo, o que não capturo dos diálogos me permite fantasiar situações e criar histórias para completar o relato.
A partir dos fragmentos, imagino grandes tramas, graves conflitos, conspirações diabólicas, intrincados dilemas, enfim, homens e mulheres enfrentando momentos decisivos de suas existências. Se não houver grandeza, a fantasia não vale a pena. E quem sabe a fantasia não corresponde à realidade e os relatos entrecortados tenham, para esses populares, uma magnitude que nós não conseguimos alcançar?
Outro aspecto interessante que me chama a atenção é que o narrador das conversas jamais é um perdedor e sempre sai em vantagem diante do outro participante do relato. Um exemplo típico é a descrição daquele embate, provavelmente contra o chefe, em que o passante diz para seu parceiro de caminhada: “Agora ele sabe que comigo é mais embaixo”. E eu fico imaginando no que vai dar esta queda de braço. Um deles certamente vai para a fila do SINE.
Igualmente muito comum é o diálogo entre duas jovens senhoras, tagarelando no calçadão de Ipanema: “Tu nem sabe o que o patife apresentou desta vez”. Imagino sempre o pior, histórias de infidelidade conjugal, flagrantes de adultério do patife ou algo do gênero. Lamento, mas neste caso não consigo pensar em nada que não seja sacanagem. Da mesma forma quando ouço, à passagem dos garotões sarados, um deles exclamando: “Cara, que noite!”. Só posso imaginar uma noitada de luxuria e aí o sentimento que se apossa de mim é o da inveja. E tem aquela clássica frase, também parte de diálogo entre homens: “Convidei a fulana para sair e ela...”. E aí? A fulana aceitou ou não? Se aceitou, o que rolou depois? Valeu a pena a investida? Dependendo da cara do sujeito, fico torcendo para que ele tenha sido bem sucedido, mas já me censurei por agourar o suposto caso, imaginando que o pervertido se deu mal e a mocinha se livrou de uma roubada.
Fazia essas divagações quando lembrei de uma cara amiga. É que ela não consegue entender essa minha curiosidade, certamente resquício da formação do repórter que um dia fui, e costuma reprimir minhas tentativas de aguçar os ouvidos em busca de esclarecimentos sobre os insondáveis conteúdos das conversas alheias. A amiga me acusa de abelhudo, de invasivo, de inconveniente, mas a verdade é que ela também fica atenta como uma corujinha às conversas, só que banca a dissimulada. Ela não reconhece minhas qualidades de observador da cena quotidiana e não valoriza o saudável exercício diário de entender o comportamento humano a partir de diálogos incompletos, confissões entre amigos, segredos de pequenos universos, vivências compartilhadas. E que jogue a primeira pedra quem nunca prestou mais atenção do que devia nas conversas alheias.
Flávio, isto é um traço do perfil de jornalista atento com o cotidiano...muito bom! Eurico Salis
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