terça-feira, 11 de abril de 2023

Caminhada funesta

*Publicado em 10/04/2023 em coletiva.net

A caminhada prazerosa foi interrompida por uma pergunta no mínimo funesta:

- Tu já tens onde cair morto?

A troco do que um sujeito parecendo gozar de boa saúde, tanto assim que está dedicado ao seu exercício matinal cotidiano, levanta uma questão dessas, num momento e local tão impróprios para tal.

De imediato, manifestei minha contrariedade com a abordagem proposta, além da preocupação com a probabilidade de o parceiro ter sido acometido de alguma moléstia grave, que estaria tratando em segredo. Lembrei, mas só em pensamento, que estamos numa quadra da vida em que a toda semana vem a informação da perda de alguém próximo, amigo, conhecido ou familiar. Mas de pronto afastei o pensamento negativo para não me contaminar por um clima funéreo numa bela manhã  outonal. Não adiantou porque o parceiro em seguida emendou o episódio ocorrido com um tio, recentemente falecido, e que recebeu um magnífico velório, de cerimonial impecável, num dos crematórios da cidade. Contou ainda que todos os que foram fazer a despedida ao finado ficaram surpresos com o aparato que cercava o adeus final, uma vez que o referido tio e seus familiares não eram pessoas de posse.

- Mas os filhos já tinham adquirido um plano funeral e não precisaram se incomodar quando o tio veio a falecer. Deu gosto de ver as coisas funcionando bem, o atendimento nota 10 da equipe do crematório e aí comecei a pensar seriamente que talvez devesse deixar tudo preparado para quando minha hora chegar.

Quase interrompi a caminhada diante da preocupação futura do companheiro, mais interessado em beneficiar os vivos com um bem sucedido velório do que o falecido, que na situação em que se encontraria, não poderia desfrutar do atendimento prestimoso, muito menos de eventuais mordomias oferecidas nessas ocasiões.

Pois, então me dei conta de como evoluíram em prestação de serviços os procedimentos funerários atuais, com menos aflições para as famílias. Os planos oferecem traslados,  inclusive internacionais, sepultamento ou cremação, locação de jazigo, liberação de documentos, preparação do corpo, urna (caixão) ornamentada, coroa de flores, sala de velório com lanches, organização de cortejo e, em alguns casos, benefícios adicionais como sorteios mensais de prêmios em dinheiro e seguros para o futuro morto e seus familiares. Fiquei sabendo que numa cidade do Amazonas a prefeitura até organiza um curso prático de Cerimônia Fúnebre. Tem inclusive um cidadão, devidamente encaixotado, fazendo o papel de morto para mais de 20 alunas.

Por aqui, posso atestar a evolução das chamadas exéquias, porque tenho frequentado mais cemitérios e crematórios do que gostaria, além de receber eventualmente propostas por telemarketing em  que a simpática moça começa falando em evitar problemas “naquele momento difícil”. Depois, sugere que pode  ajudar na escolha do plano ideal para mim e minha família, sem levar em  conta que o plano ideal para nós é continuar vivendo.

Gostaria de saber como o telemarketing funerário chega a minha discreta pessoa com essas ofertas sinistras. Onde vão coletar informações para se autorizarem a me ligar? Será por causa da idade?  Tiveram acesso a exames médicos reservados? Ou ficaram sabendo de algum envolvimento meu em situação escabrosa, que possa resultar em riscos de vida?

Na dúvida, talvez deva prestar mais atenção na pergunta do amigo caminhante.

- Tu já tens onde cair morto?

Pelo jeito, fui contaminado pela morbidez iniciada com uma pergunta inconveniente numa bela manhã de outono.

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