segunda-feira, 11 de julho de 2022

Croniconto: A francesa do Humaitá

*Publicado nesta data em coletiva.net

Nancy   tem mais em comum com a personagem da série Emily em Paris (Netflix)  do que a letra y no final do nome. A rigor,  não  muito mais. Talvez  até sejam parecidas fisicamente: a atriz, Lily Collins, é uma magrela americana que, no seriado, vai trabalhar em Paris. Até tem seu charme, mas fica a dever em comparação com as  francesas do elenco, mais exuberantes e, por isso mesmo, mais caldáveis.

Nancy chegou a fazer um regime rigoroso para afinar a cintura e ficar mais próxima do estereótipo da personagem. Assim passou a ter  também  em comum com a americana  as pernas finas, com uma diferença fundamental: os gambitos de Nancy são originários do Humaitá, bairro periférico de Porto Alegre, que abriga a Arena do Grêmio ( “suis desole”, lamentaria ela,  colorada) enquanto os de Emily vieram de Chicago, a cosmopolita cidade no centro-oeste dos EUA, terra do time de basquete Chicago Bulls.

Com muita determinação Nancy superou todas essas diferenças culturais e econômicas e aportou em Paris bem antes da Emily, que agora, de volta ao Humaitá,  procura imitar como forma de matar a saudade da sua amada Cidade Luz.  Ao conseguir uma bolsa de aperfeiçoamento em francês, pediu licença do emprego, vendeu o carro e se mandou para Paris. Alugou um pequeno apartamento num  arrondissement não muito longe da região da Ilha da França (“Ile de France”, corrige)  e passou a viver sua vida de pré Emily, assumindo o lado pernóstico dos franceses e o estilo intrometido dos americanos,  com seu viés de  superioridade. 

Foi lá num café próximo ao Arco do Triunfo que recebeu um amigo, de passagem pela cidade, ela vestida à caráter no frio europeu, sem faltar a boina vermelha, à francesa. O relato do encontro foi feito posteriormente pelo rapaz , numa noitada regada a cerveja, na volta dele ao Brasil. Assim, os acontecimentos e opiniões a seguir são de inteira responsabilidade desse personagem.

Tomaram um cappuccino, colocaram a conversa em dia, pontuada de expressões  francesas de parte dela . Muitos “c’est bom”  depois, a moça fez um convite:

- Ça te dit? E já traduziu: Você topa?

Pelo olhar dela, ele já havia entendido a proposta no original em francês e, então, o inevitável aconteceu. O reencontro derivou para intimidades, intensas por sinal, porque ela estava há um bom tempo sem praticar.  O hotel dele era próximo ao café e foi lá onde a transa aconteceu.

Depois saíram, como um casal de namorados, a curtir a fria noite parisiense num tour pelo Quartier Latim de vários brindes de um rouge nacional, francês de raiz, enquanto ela cantarolava “Ne me quitte pas”, tentando imitar, canhestramente, o lamento de Edith Piaf.

O romantismo da Cidade Luz, porém, não prosperou quando ela voltou ao Humaitá, depois de seis meses no exterior. Paris estava longe, mas agora havia a conexão Emily para lembrar os bons momentos vividos no exterior. Nancy adotou o francês como segundo idioma, às vezes o primeiro, e passou a adotar o figurino parisiense, com variações a cada estação.

- A pessoa sai de Paris, mas Paris não sai de “la personne”!,- justificava, com uma inflexão e biquinho ao pronunciar “ personne”.

Corta para a França, porque o amigo da  neo francesa, descobriu um contraponto a Nancy pra lá de interessante. É que a imitada Emily contracena com  uma quarentona em grande forma, Sylvie (detalhe da letra y no nome), papel da atriz Philippine Leroy-Beaulieu (detalhe do y no segundo nome), que viveu no Brasil, viajou muito pelo país  e não esconde que adora tudo o que diz respeito à nossa terra. Como se estivesse presente a uma mesa de café, igual aquela em que reencontrou Nancy, o amigo teria testemunhado o diálogo da francesa de fato com um parceiro francês:

- Que pais fantastique, o Brésil, mom amie, - falou num mix de francês e português, carregado de sotaque.

Na série, Philipini interpreta a elegante, mas implacável chefe de Emily  e seu perfil, até pela faixa etária, é mais condizente com nossa francesa do Humaitá, que, entretanto, prefere encarnar a jovem  e esfuziante Emily. E nesta caracterização, Nancy  justifica, quase num lamento, sua paixão pela distante Paris.

- J’ai quitté Paris, mais Paris ne m’a pas quitté. Eu sai de Paris, mas Paris não saiu de mim.

Quando o ex affair de Paris, num ocasional reencontro em Porto Alegre, disse não entender essa preferência, foi logo atalhado por uma adaptação  da frase imortalizada no final do filme Casablanca:

- Sempre haverá Paris! Ou melhor, mom Cherry: “ Nous aurons toujours Paris!

Só não havia As time goes by para servir de trilha, enquanto no café em Paris,  Philippine tem outra versão para sua amada terra distante, caprichando agora no português:

- A gente deixa o Brasil, mas o Brasil continua na gente. Que pais maravilhoso!

Instintivamente batucou  na mesa, como se estivesse ouvindo os acordes de Brasileirinho. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário