segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O acumulador

* Publicado nesta data em coletiva.net

Parece ser mania de jornalista guardar papéis antigos, tipo documentos vencidos, matérias e recortes de jornais e revistas, artigos que julgava interessantes, folders promocionais e coisas do gênero, sempre com a certeza de que aquele acervo seria utilizado mais adiante. Como tive muitos empregos ao longo da vida profissional e sempre guardei subsídios sobre as funções desempenhadas, é fácil imaginar o que acumulei de materiais, a maioria inútil agora. O tempo é um juiz implacável da serventia futura desses guardados e seu veredito em relação ao que ficou retido nas gavetas tem sido desfavorável em boa parte dos casos, sem direito a recurso.

Como acumulador compulsivo, nem sempre consigo me desapegar do que um dia teve utilidade e que, por isso, deve ser tratado com respeito, mesmo sendo um documento que beneficia mais às traças do que a possibilidade  de reaproveitamento.  Num fim de semana recente, na busca ansiosa por um texto importante que eu imaginava estar guardado numa pasta e que encontrei vazia, acabei confrontado com algumas preciosidades, já esquecidas que um dia haviam existido. Coisas como seis passaportes, e olha que nem viajei tanto assim, contracheques de todos os meus empregos - quando descobri que já fui um milionário antes do advento do Real -, crachás de eventos e serviços diversos, inclusive daquela campanha política com trabalhos prestados ao Duda Mendonça (sei lá, daqui a pouco omito isso da minha biografia),  e o que guardo com mais carinho, o da Copa de 1994, junto com os ingressos dos jogos a que assisti na Copa de 2014  e que ficarão para uma futura tarefa de gincana, assim como outros itens serão reservados para o  Memorial Flávio Dutra.

Foi também um mergulho emocional no passado mais distante, quando me deparei com boletins escolares de notas apenas satisfatórias, cadernos, um pra cada matéria, com uma caligrafia tão mais caprichada do que a atual, e fotos, não muitas  e todas em preto e branco, daqueles tempos sonhadores e  de menos responsabilidades.  Só não encontrei minha coleção do Na Onda, o jornalzinho mimeografado que os amigos e eu editávamos nos anos 1960 e que foi o nascedouro de minha vocação jornalística.

Cada item resgatado remeteu a um recorte da vida, nem todos felizes, mas todos somando experiência. O baú de memórias é isso, o depositário das experiências acumuladas e aí o desprendimento é bem mais difícil.

Nada, porém, se compara  ao desapego de benquerenças e dos afetos pessoais, este sim um processo sofrido e que só o tempo pode curar. Dito assim, soa piegas, o que é verdade e uma incoerência diante do deboche que faço das pieguices alheias. Que me sirva de lição no nível dos relacionamentos, mas quanto a papelada e os bens materiais vale  a recomendação que pesquisei no  maior de todos os baús de memória, o Google:  “Afinal, se coisas boas se vão é para que coisas melhores possam vir. Esqueça o passado, desapego é o segredo”. Voto com o relator, que seria o grande Fernando Pessoa. E se não for, assino embaixo assim mesmo, para deixar de ser, com esse compromisso, o acumulador obsessivo de inúteis retalhos do passado.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário