segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Crise de abstinência

* Publicado nesta data em  coletiva.net

O efeito mais danoso da pandemia nas nossas vidas foi a quebra das rotinas. Todos nós, desde o despertar até a hora de dormir, do primeiro xixi ao último bocejo, seguimos uma série de rotinas, ações quase automatizadas em sequência porque exercidas há muito tempo. Mesmo o mais inovador e irrequieto de nós atende a roteiros pré-estabelecidos nas suas atividades, sem os quais perderia o norte. A rotina é a caminhada e ao trilhá-la estamos seguros de que a vida abraça seu curso e que os destinos de cada dia serão alcançados.

O problema é que agora  grande parte dos rituais diários aos quais estávamos acostumados foram interrompidos, a começar pelo modo de subsistência, o trabalho, não mais presencial mas em casa, o famoso home office.  Mais do que emprego e fonte de renda, o local de trabalho é referência diária, espaço de convivência, de socialização e de uma agenda de tarefas e relacionamentos. A chamada firma ou a repartição é o “lugar da gente ir”, como bem definiu um amigo. O tal de home office acabou com tudo isso, tornando virtual e distante o que era contato físico e  interação.  Não tem mais a fofoca de corredor, lições ao vivo dos mais veteranos,  troca de experiências, olho espichado discretamente para a caldável do pedaço e vice versa,   além do chopinho ao fim do expediente.  O espaço do cafezinho está vazio e sobre as mesas empoeiradas o calendário ainda vive em março.

Os especialistas  já se debruçam sobre os efeitos nocivos desse processo nas relações de trabalho, mas os estudos devem ir além, ampliando a preocupação com a saúde mental de todos os que estão submetidos à  pandemia, ou seja, grande parte da população mundial. Teses e mais teses já são formuladas a respeito, todas com o aval das mais respeitadas academias.

Psicólogo formado nas mesas de bar, ouso afirmar que não é o confinamento e a consequente falta de socialização o  que está afetando a psique das pessoas. É o efeito disso:   a falta da monotonia da rotina, das ações metódicas e previsíveis, da redundância de situações, substituídas por outras ocorrências que ainda não foram aculturadas. Que novo normal, que nada! Não se mexe impunemente nos ritos  pessoais, naquilo a que já estamos acostumados. E mais: a nova onda não vai ser só a do Covid, mas também a da readaptação aos antigos hábitos quando a pandemia acabar.

Devo dizer que enfrentei bem as agruras do confinamento, especialmente nos primeiros meses, até descobrir, num exame feito aleatoriamente, que o vírus  tinha me encontrado. Mesmo que o efeito fosse assintomático – não tive uma dor de cabeça, uma tosse, nada, nada, nada, nem transmiti para ninguém – cumpri a quarentena e voltei à ativa. Até então, buscava, de alguma forma, me manter em atividade, criando novas rotinas.  Li menos do que gostaria e escrevi mais do que deveria, daí ter acumulado muitas asneiras em pílulas e textões.  Em compensação, assisti a todas as séries e  filmes que pretendia e que estavam disponíveis nas plataformas que assino.  Não abri mão das caminhadas matinais, nem dos churrascos familiares de domingo, mas fiquei com uma saudade imensa das minhas amadas confrarias. Confesso, sem constrangimento, que aumentei o consumo de vinhos, tinto de preferência.

Agora espero a volta do normal de verdade e, com ele, a plenitude das minhas rotinas, das minhas mesmices, dos meus hábitos de sempre, mesmo que o horizonte da mudança ainda esteja incerto. Só que um dia vai passar e a crise de abstinência pela ausência das viciantes mas benditas rotinas vai cessar. Não custa rogar com fervor.

 

 

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