segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Vozes do Além


*  Publicado nesta data em coletiva.net

- Se você disse alguma coisa não entendi muito bem,

Essa voz do além, em forma de advertência, me persegue e constrange nos momentos mais inoportunos: numa palestra importante, numa reunião decisiva, no transporte coletivo lotado. É uma voz feminina que surge do nada, porque não lembro de ter acionado algum comando do celular que justifique a vinda dela lá da nuvem onde estava homiziada. Ato contínuo tento neutralizar o som, mas como não sou manso na operação do celular, isso se revela inútil.  Além de invasiva, ela parece ter dificuldades de audição  e eu é que passo a receber olhares de reprovação dos circunstantes. Não faltam risinhos debochados. Bota vergonha nisso.

Já passei por situações mais  constrangedoras ainda por causa de certos áudios. Em evento para jornalistas, estava a me exibir para uma moça do interior quando recebo uma  mensagem pelo Whatsapp e decido verificar do que se tratava. Era o auge de uma relação sexual, com gritos histéricos da parceira. Eu devia desconfiar que aquele bandalho só me mandava mensagens de natureza erótica ou piores.  Resultado: o exibimento acabou, ainda mais  que a moça, olhou a tela e  sentenciou:

- Bah, mas o que é isso? Que pouca vergonha!

Jogue a primeira pedra quem já não  passou por uma situação parecida, mas sejam  honestos. Jogue  a primeira pedra também quem nunca  replicou uma mensagem  repleta de sacanagens para o endereço errado, o grupo da família, o chefe carola ou para aquela amiga para a qual você faz olhinhos com pretensões maldosas para o futuro.  Menos mal que agora o Whatsapp implantou o dispositivo que permite deletar as mensagens, mas o bagaceira tem que ser  ágil.

Um assunto puxa outro e acabo perdendo o foco, talvez perturbado pela lembrança dessas situações vexaminosas. Na verdade, queria falar do empoderamento feminino pelas vozes das assistentes virtuais, tipo a que me atormenta em momentos indevidos. A Siri, da Apple, a Cortana, da Microsoft, a Alexa, da Amazon são algumas das mais  populares. O Bradesco tem a Bia, a Oi a Joice, a Vivo a Vivi, o Carrefour a Carina e por aí vai. Maravilhas da Inteligência Artificial.  E tem a voz anasalada do GPS, aquela que pede para a gente virar à direita, a esquerda a 100 metros...

Registre-se que  são nomes majoritariamente femininos, a exceção do Theo, da  Sicredi e criou-se uma dúvida, pelo menos para mim, em relação ao gênero do dispositivo Echo, da Amazon, que sugere um nome masculino, mas que tem na Alexa a assistente virtual para comandos de voz em português. Isso me leva a suspeitar que se trata de um dispositivo trans, o que faz sentido nestes tempos  de plena aceitação da diversidade.

E, de novo, estou a divagar, escapulindo do tema do empoderamento feminino pela voz das assistentes virtuais. A razão para a preferência das mulheres, segundo estudos acadêmicos nos EUA, seria porque as vozes femininas são mais acolhedoras e geram empatia. Outro argumento dá conta de que o cérebro é desenvolvido para gostar mais de vozes femininas. A predisposição se originaria desde cedo, já  que os bebês atendem mais a uma voz feminina, mais compreensiva,  do que a masculina, que teria um quê de autoritária.

Há controvérsia, porém. Os tiques vocais das mulheres, apontam outros estudos, são criticados com mais frequência do que os dos homens. Teria ainda uma motivação mais cultural: a escolha das vozes femininas seria um caso de machismo, uma vez que as assistentes virtuais são criadas para seguir ordens e, assim, a mensagem que fica é a de que as mulheres seriam subservientes aos homens. Como são homens que geralmente criam essas assistentes, com vozes e nomes femininos, isso refletiria como os homens enxergam as mulheres: elas não são totalmente humanas. “Seria, portanto, uma  extensão da objetificação feminina”. Bah! Coloquei entre aspas e me apresso a informar que a opinião é da inglesa Kathleen Richardson, especialista em Ética e Cultura da Robótica da De Montfort University Leicester (Reino Unido)

A academia tem tempo e  disposição para esses debates controversos, cujo resultado, ao fim e ao cabo, é nenhum. E como no caso da voz do além, confesso que não entendi muito bem os argumentos.

Ah, eu queria falar ainda da Iris Lettieri, dos aeroportos a voz mais bela, mas acho que já esgotei o espaço e a paciência de vocês.

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