segunda-feira, 13 de junho de 2022

Não estamos sós

 *Publicado nesta data em coletiva.net

Se as séries sobre política, eleições  e poder,  exibidas nos canais de streaming,  refletem a realidade dos países onde foram produzidas, aqui vai um consolo para nós brasileiros: lá fora também tem muita sacanagem e maracutaia  nos altos escalões.  Claro que se trata de um nivelamento por baixo, mas vale conferir os  exemplos de como se dão os enfrentamentos e as negociações no ambiente político em países que, muitas vezes, invejamos  como icônicos no comportamento ético de suas lideranças.

Até vou pular a série “ House of  Cards”,  que trata da ascensão dos Underwoods (Frank/Kevin Spacey e Clair/Robin Wright)   à presidência dos EUA.   As campanhas eleitorais americanas, virulentas e de baixo nível, já não servem de modelo pra ninguém há muito tempo e “House Of Cards”, em sexta temporada, apenas radicaliza o cenário.

Vamos aos exemplos de outros países, todos do Netflix, que confirmam a assertiva inicial. “Marseille”, produção francesa de 2016, retrata a história de Robert Taro (o velho e bom Gerard Depardieu), prefeito há 25 anos da cidade que dá nome à série, que descobre a traição do parceiro político prestes a assumir a prefeitura, desencadeando uma guerra pelo poder e controle do município, envolvendo até a máfia. Nada muito diferente do que acontece em várias cidades brasileiras, apenas trocando a máfia por milicianos e/ou outros grupos à margem da lei, que interferem nas disputas político-eleitorais.

Já “O Jornal” (Novine, no original), série da Croácia,  diz mais sobre as relações dos políticos com a mídia e outras instituições do que sobre a operação do diário  que dá título à produção. Em duas temporadas, iniciadas em 2016, a série mostra um desfile de políticos corruptos, empresários inescrupulosos, policiais que agem como criminosos,  jornalistas divididos entre a  missão de bem informar ou servir aos poderosos de  plantão e até o envolvimento, nada cristão, da hierarquia católica nos malfeitos que conduzem ao poder. Olha, a série “O Mecanismo”, de José Padilha, vira Sítio do Pica-Pau Amarelo diante de “O Jornal”.

A ótima série “Borgen” (O Castelo, termo coloquial como é conhecido o palácio sede dos três poderes do pais) mostra que existe algo de podre no reino as Dinamarca, com o perdão do clichê. São quatro temporadas ( 2010/13 e a quarta lançada agora) sobre a trajetória de Birgitte Nyborg (Saidse Knundsen), líder do partido dos Moderados que, contra todas as probabilidades, torna-se a primeira mulher a ascender ao cargo de primeiro-ministro. Dito  assim, até parece que o mandato dela é uma permanente celebração da boa prática política. Que nada, Birgitte sofre nas mãos das velhas raposas dos outros partidos, a  exigir cargos e benefícios em troca de apoio ( como um Centrão brasileiro),  além da incompreensão da família por, inevitavelmente, dedicar mais tempo ao governo do que  ao lar. Detalhe: o principal partido de oposição na série, liderado por um editor inescrupuloso, chama-se Partido Trabalhista. Deve ser mera  coincidência com fatos e pessoas tupiniquins. Detalhe dois: a diferença entre a corrupção dinamarquesa, pelo menos no seriado, e a daqui, é de escala. Lá o ministro da Defesa tem que se explicar porque aceitou dois rifles de presente de um fornecedor de armamentos; aqui é grana nas cuecas, malas de dinheiro e desvios de recursos das estatais e da área da Saúde. 

Um personagem tão importante na série como a primeira-ministra é seu assessor de imprensa, Kasper Juul (Pilow Asbaek), que não hesita em manipular jornalistas – especialmente as jornalistas - e informações  para livrar a chefe de situações incômodas. Na verdade, ele é bem mais do que assessor de imprensa: é um conselheiro sempre ouvido nas crises, até porque é um eficaz operador de bastidores e do lado B da política, portanto, uma figura que também se reproduz com este perfil  - e às pencas -  no cenário brasileiro, muitas vezes travestido de marqueteiro.

É preciso reconhecer, entretanto, que “Borgen” revela igualmente um outro lado da atividade política, sempre tão demonizada: a dos bem- intencionados por formação, a dos que escolhem o bem comum como prioridade, a dos que servem e não se servem do que é público,  a dos verdadeiros estadistas, mas que pagam um pesado ônus pela vida pessoal afetada e pelo constante dilema de decidir entre fazer o certo ou  agir com pragmatismo.  A estes está reservada a solidão do poder, as frustrações pelos ideais maculados, a amargura das causas perdidas e o desafio de sobreviver num mundo de permanente pressões e tentações.. Que pelo menos eles sirvam de inspiração aos vocacionados  para a boa política que, com certeza, ainda existem no mundo real e não apenas na ficção.

*Reeditei este texto de outubro de 2020 pela proximidade das nossas eleições gerais, marcadas por enfrentamentos, negociações, acordos, baixarias e algo mais, realidades próprias dos ambientes políticos tensionados, mas nada que já não se conheça ou que seja exclusividade do processo brasileiro.

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