segunda-feira, 23 de março de 2020

A Senhorinha e o Veterano


* Publicado nesta  data em coletiva.net

As restrições de mobilidade impostas pela pandemia vão me privar do convívio quase diário com duas figuras pra lá de faceiras. Falo dos meus iguais em faixa etária, que batizei de A Senhorinha da Sala  de  Espera e O Veterano da Fila.

Vamos por partes. 

A Senhorinha da Sala de Espera é aquela que normalmente monopoliza a conversa  entre os circunstantes, enquanto aguardam o atendimento, seja no médico, no dentista ou na repartição pública.  Em pouco tempo, ela transforma sua vizinha de cadeira em amiga de infância. E logo toda a sala fica sabendo dos detalhes da sua vida, da vida dos filhos e  das filhas, com quem são  casados (as) e, se separados, o quanto não prestava o cônjuge – “aquele traste” ou “aquela ordinária”. Em seguida, vem a descrição entusiasmada dos netos, “lindos, educadinhos e estudiosos” na maioria dos casos. Tem também a versão “pena, ainda não me deram netos e eu gostaria tanto de ser avó”.

Como, pra variar, o atendimento está atrasado, segue a conversa unilateral com  a seção agenda, quando a Senhorinha relata todos os  compromissos dela, o  chá com as amigas, a ida ao mercado, a dificuldade com o caixa eletrônico,  a conversa com o açougueiro, o pito nos garis que deixaram lixo pelo caminho, o telefonema demorado para a amiga distante, conversa relatada em pormenores e, na sequência, o que ainda precisa  fazer “se  der tempo, depois do doutor me atender”. A agenda furura inclui a missa na paróquia ou assistindo pela TV, “com aquele padre mocinho que canta, o Fabio de Melo”. A espera do médico, queixa-se de achaques típicos da idade e é capaz de prescrever os  mais eficazes tratamentos para todos os males, incluindo  aquela  receita caseira que aprendeu com a vó imigrante lá nas grotas, onde nasceu e cresceu, o que também é motivo para detalhada descrição.  ”Garanto que comigo e com uma comadre minha essa receita funcionou” , enfatiza ela.  Vale registrar que as Senhorinhas da Sala de Espera pouco falam sobre o marido, o que  me leva a supor que são viúvas na maioria.

Já o Veterano adora uma fila, daí o título,  porque é nela que vai encontrar os interlocutores para suas observações e reclamos,  nem sempre correspondidos. Mas é o momento da socialização, já que é aposentado e não tem mais o ambiente  da firma para interagir.  Domingos e feriados, dias sem filas,  são torturantes para ele, diferente dos sábados quando frequenta as lotecas em busca dos incautos, ou dos seus iguais, e onde joga  sempre os mesmos números na  Mega Sena, que ele insiste em chamar de Loto.

O Veterano sempre tem uma história para contar, dele ou de um conhecido, basta que alguém pronuncie alguma deixa que estabeleça a conexão. O causo é normalmente comprido, cheio de detalhes e personagens desconhecidos ou não (“Sabe o Bastos? Trabalhava na Hora e era particular amigo do meu pai”). A conclusão é sempre com uma lição de moral e de vida, porque o Veterano é um autêntico cidadão  de bem e se orgulha disso. Ele se exalta um pouco quando reclama da prestação mal executada de algum serviço. A queixa  sempre vem acompanhada de uma lembrança saudosista, tipo “isso  não acontecia no tempo do doutor Meneguetti”, ou “se fosse no tempo do doutor  Brizola esse pessoal estava todo na rua”, ou retrocedendo ainda mais, lasca um  “no tempo  do velho Borges...”

 Mas é comentando futebol que se torna imbatível e um crítico severo dos craques e  clubes atuais. “ No meu tempo os  atletas vestiam a camiseta e jogavam com o coração, não era como esse pessoal de agora, um bando de mercenários”, se exalta de novo. Sente saudades do Renner, “que timaço aquele, pena que terminou” e  se a conversa de estender é capaz de recitar a “linha média”  dos times de antanho. “Rui, Bauer e Noronha, do São Paulo, um colosso, não teve igual”.  Quando desdenham de seus conhecimentos, ele retribui  com um “essa mocidade não sabe nada”.
Fico imaginando um improvável encontro entre a Senhorinha e o Veterano. Digo improvável  porque ambos  são exclusivistas, lobos solitários de seus misteres, sem disposição para compartilhar os mesmos ambientes e os mesmos públicos que conquistaram, dos quais exigem a máxima atenção.  Até pareço ouvir um duelo verbal entre eles:

- Este senhor é muito inconveniente.
- Esta senhora só ela  quer falar.

Tem muita ficção e até exageros nessas descrições, mas rendo minhas sinceras  homenagens às duas emblemáticas figuras, que todos nós certamente encontramos, nas andanças por aí, com alguma variação no modus operandi. Tais encontros podem ser prazerosos, com ótimos momentos de aprendizado devido a experiência e  sabedoria acumuladas pela dupla, que fez a opção preferencial pela vida; que entoa mantras  de esperança que tanto precisaríamos nestes tempos em que estamos tão frágeis; que faz da eloquência uma ponte para os generosos convivios com  o próximo e dos  relacionamentos um jeito próprio de convergir, confraternizar e mostrar que ninguém é  uma ilha.

Por  isso, lamento o isolamento social a que nós de 60+  fomos submetidos para cortar a corrente do vírus, mas com o perverso efeito de cortar também o melhor dos convivência humana. Deixa estar,  depois que tudo passar, ao encontrá-los na sala de espera e na fila do banco, vou provocá-los com apenas uma questão e deixar a conversa fluir:

- Mas e aquele tal de coronavirus?


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