* Publicado nesta data em coletiva.net
As restrições de
mobilidade impostas pela pandemia vão me privar do convívio quase diário com
duas figuras pra lá de faceiras. Falo dos meus iguais em faixa etária, que
batizei de A Senhorinha da Sala de Espera e O Veterano da Fila.
Vamos por partes.
A Senhorinha da Sala de
Espera é aquela que normalmente monopoliza a conversa entre os circunstantes, enquanto aguardam o
atendimento, seja no médico, no dentista ou na repartição pública. Em pouco tempo, ela transforma sua vizinha de
cadeira em amiga de infância. E logo toda a sala fica sabendo dos detalhes da
sua vida, da vida dos filhos e das
filhas, com quem são casados (as) e, se
separados, o quanto não prestava o cônjuge – “aquele traste” ou “aquela ordinária”.
Em seguida, vem a descrição entusiasmada dos netos, “lindos, educadinhos e
estudiosos” na maioria dos casos. Tem também a versão “pena, ainda não me deram
netos e eu gostaria tanto de ser avó”.
Como, pra variar, o
atendimento está atrasado, segue a conversa unilateral com a seção agenda, quando a Senhorinha relata todos
os compromissos dela, o chá com as amigas, a ida ao mercado, a
dificuldade com o caixa eletrônico, a
conversa com o açougueiro, o pito nos garis que deixaram lixo pelo caminho, o
telefonema demorado para a amiga distante, conversa relatada em pormenores e,
na sequência, o que ainda precisa fazer
“se der tempo, depois do doutor me
atender”. A agenda furura inclui a missa na paróquia ou assistindo pela TV,
“com aquele padre mocinho que canta, o Fabio de Melo”. A espera do médico,
queixa-se de achaques típicos da idade e é capaz de prescrever os mais eficazes tratamentos para todos os
males, incluindo aquela receita caseira que aprendeu com a vó
imigrante lá nas grotas, onde nasceu e cresceu, o que também é motivo para
detalhada descrição. ”Garanto que comigo
e com uma comadre minha essa receita funcionou” , enfatiza ela. Vale registrar que as Senhorinhas da Sala de
Espera pouco falam sobre o marido, o que
me leva a supor que são viúvas na maioria.
Já o Veterano adora uma
fila, daí o título, porque é nela que
vai encontrar os interlocutores para suas observações e reclamos, nem sempre correspondidos. Mas é o momento da
socialização, já que é aposentado e não tem mais o ambiente da firma para interagir. Domingos e feriados, dias sem filas, são torturantes para ele, diferente dos
sábados quando frequenta as lotecas em busca dos incautos, ou dos seus iguais,
e onde joga sempre os mesmos números
na Mega Sena, que ele insiste em chamar
de Loto.
O Veterano sempre tem uma
história para contar, dele ou de um conhecido, basta que alguém pronuncie
alguma deixa que estabeleça a conexão. O causo é normalmente comprido, cheio de
detalhes e personagens desconhecidos ou não (“Sabe o Bastos? Trabalhava na Hora
e era particular amigo do meu pai”). A conclusão é sempre com uma lição de
moral e de vida, porque o Veterano é um autêntico cidadão de bem e se orgulha disso. Ele se exalta um
pouco quando reclama da prestação mal executada de algum serviço. A queixa sempre vem acompanhada de uma lembrança
saudosista, tipo “isso não acontecia no
tempo do doutor Meneguetti”, ou “se fosse no tempo do doutor Brizola esse pessoal estava todo na rua”, ou
retrocedendo ainda mais, lasca um “no
tempo do velho Borges...”
Mas é comentando futebol que se torna
imbatível e um crítico severo dos craques e
clubes atuais. “ No meu tempo os atletas vestiam a camiseta e jogavam com o
coração, não era como esse pessoal de agora, um bando de mercenários”, se
exalta de novo. Sente saudades do Renner, “que timaço aquele, pena que
terminou” e se a conversa de estender é
capaz de recitar a “linha média” dos
times de antanho. “Rui, Bauer e Noronha, do São Paulo, um colosso, não teve
igual”. Quando desdenham de seus
conhecimentos, ele retribui com um “essa
mocidade não sabe nada”.
Fico imaginando um
improvável encontro entre a Senhorinha e o Veterano. Digo improvável porque ambos
são exclusivistas, lobos solitários de seus misteres, sem disposição
para compartilhar os mesmos ambientes e os mesmos públicos que conquistaram, dos
quais exigem a máxima atenção. Até pareço
ouvir um duelo verbal entre eles:
- Este senhor é muito
inconveniente.
- Esta senhora só
ela quer falar.
Tem muita ficção e até
exageros nessas descrições, mas rendo minhas sinceras homenagens às duas emblemáticas figuras, que
todos nós certamente encontramos, nas andanças por aí, com alguma variação no modus
operandi. Tais encontros podem ser prazerosos, com ótimos momentos de
aprendizado devido a experiência e
sabedoria acumuladas pela dupla, que fez a opção preferencial pela vida;
que entoa mantras de esperança que tanto
precisaríamos nestes tempos em que estamos tão frágeis; que faz da eloquência
uma ponte para os generosos convivios com
o próximo e dos relacionamentos
um jeito próprio de convergir, confraternizar e mostrar que ninguém é uma ilha.
Por isso, lamento o isolamento social a que nós
de 60+ fomos submetidos para cortar a
corrente do vírus, mas com o perverso efeito de cortar também o melhor dos convivência
humana. Deixa estar, depois que tudo
passar, ao encontrá-los na sala de espera e na fila do banco, vou provocá-los
com apenas uma questão e deixar a conversa fluir:
- Mas e aquele tal de
coronavirus?
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