domingo, 16 de dezembro de 2018

Identidade seminal


* Publicado em Coletiva.net em 26/11/2018
-Bom dia, seu Júlio.

O cumprimento do rapaz que  circula de bicicleta todas as manhãs em Ipanema é tão previsível como as minhas caminhadas pelo calçadão.  O rapaz era amigo do meu filho, já frequentou minha casa, mas acho que por não desempenhar outra atividade, a não ser pedalar  o dia todo e  todos os dias, criou na sua cabeça, ornada por dreadlocks, uma identidade que não corresponde a do caminhante.

Respondo a ele  como a mesma civilidade, ora com “bom dia”, ora  com um gesto de positivo. É que já estou acostumado a ser vítima e agente de  trocas de nomes.  A cozinheira da firma, por exemplo, pede desculpas  cada vez que me chama de ”seu Sérgio”. Tempos atrás quando trabalhava como comprador de uma instituição, um veterano e formal vendedor de material de escritório alternava, na mesma negociação, propostas ao “senhor  Jorge”, “senhor Cláudio”, “senhor Valter”, além dos  senhores “Júlio”, “Sérgio” e até “Flávio”.  Achava aquilo  tão fantástico que não me atrevia a corrigi-lo.



Sei lá o que Jorge, Cláudio, Valter, Júlio e  Sérgio tem em comum com Flávio.  Talvez porque  sejam nomes curtos, no máximo sete letras, alguns com o mesmo acento na primeira sílaba  e a mesma divisão silábica.  Mas isso não  é salvo conduto para sair por ai trocando o nome que  a dona Thelia, minha santa  mãe,   escolheu para seu querido sexto  filho e cujo significado é singelo, mas tem história: o nome Flávio tem origem a partir  do latim Flavius, que se originou na palavra flavus, que quer dizer “amarelo”, “dourado” ou “louro”, em referência a cor  dos cabelos. O surgimento do nome tem  como base o de uma  família romana, de onde saíram três imperadores, a partir de Tito Flavio Sabino Vespasiano, que deu origem a dinastia conhecida  como “flaviana”. Origem dinástica, por essa nem eu esperava!



O histórico do nome não impede, entretanto, as trocas a que tenho sido submetido e que podem ser castigos para  as que tenho cometido. Um exemplo clássico é saudar o produtor cultural  Esdras Rubin como Wesley Cardias, especialista em marketing, que nem parecidos são. Menos mal que ambos já  revelaram que  não é exclusividade minha essa troca.



Só utilizo o nobre espaço proporcionado pelo Coletiva.net  para tratar de uma questão aparentemente banal e  pessoal porque defendo que reconhecimento e respeito à identidade seminal, no caso o nome de registro,  tem -  ou deveria ter - valor de cláusula pétrea para todos. A  legislação brasileira    prevê a adoção do nome social por travestis e transexuais em substituição ao nome de registro, porque é ao novo nome que a pessoa  se identifica,  uma vez que corresponde ao gênero a que ela aderiu. Porém, daqui a pouco surgirá um movimento para o reconhecimento a algo como Nome Ideológico para satisfazer os que agregaram Lula ou Bolsonaro ao seus nomes. Valeria também para os Guarani-Kaiowa. A Justiça Eleitoral já admite registro de candidaturas com tais composições. Só que essa turma tem mais apreço ao voto do que as suas identidades.



No meu caso, tão grave como a trocas, que não faço por maldade ou desrespeito,  é o branco que me acomete diante de conhecidos, cujo nome me escapa. Chamaria a situação de “Mal da Fila de Autógrafos”, pois se acentua nos lançamentos de livros. Você divisa aquele velho conhecido chegando cada vez mais perto  para receber os seus garranchos no livro que ele gentilmente adquiriu e o nome não vem à memória.  Na recente sessão de autógrafos de “A Maldição de Eros”  ocorreu uma situação  dessas com uma figura  querida e conhecidíssima e nada de lembrar o nome. Fui  providencialmente socorrido por um  casal amigo  que teve a feliz ideia de cumprimentá-lo pelo nome, antes que  aportasse  em mim.



Agora  estou me policiando  e criando estratégias para não cometer mais gafes ou esquecimentos. Garanto  que vou mudar ou não me chamo mais Júlio Sergio Claudio Valter Jorge Flávio Vieira Dutra,.



*Por curiosidade  registro do significado dos outros nomes aqui mencionados. Jorge, na origem, significava agricultor;  Valter, poderoso guerreiro; Júlio, pessoa jovem: Claudio, coxo, manco, daí o termo “claudicante”; Sérgio, protetor. Olha, confesso que só trocaria meus dourados pela juventude do Júlio, o que talvez absolva o rapaz da bicicleta. Vá que ele ache o veterano aqui nem tão veterano!


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