domingo, 25 de março de 2018

Prazer verdadeiro


Os encontros com Ernesto sempre rendem receitas de bons pratos e ótimas indicações de vinhos. Só que não entendia porque o dileto amigo de tantas confrarias insistia em me brindar com essas informações, já que ele sabia que sequer sei fritar um ovo,  o que dirá produzir os pratos elaborados que ele descreve. Também já cansara de explicar que meus conhecimentos enológicos se resumiam a distinguir os brancos dos tintos, os espumantes dos frisantes e que passo vergonha se tiver que escolher entre um Malbec e um Cabernet, ou entre um Pinot Noir e um Merlot.  É bem verdade que não reconheço os chamados vinhos finos, mas meu paladar está treinado para rejeitar os vinhos de baixa qualidade, da mesma forma que um bolsonarista rejeita um lulista e vice versa. Por aí vocês tem uma ideia da dramaticidade da questão nos encontros com o Ernesto.

De tudo isso era sabedor o meu amigo, mas ele insistia em me torturar gastronômica e etilicamente.   "Olha recebi um Chardonnay chileno , safra 2015 que é uma beleza. Vai bem com  frango assado ao molho de limão e ervas, ou anéis  de lula na manteiga de limão siciliano”,  ele  recitava, sem uma pausa e parecendo salivar enquanto definia a harmonização.  Ou então,  “ dia desses preparei pappardelle com gorgonzola, nozes e um belo filé. Advinha com que vinho harmonizei esse jantar dos  deuses?”  Diante da minha cara de idiota ele completou:  “Com um Reserva Carignan, safra 2014, um vinho exuberante e complexo. Magnifique!”, exclamou num francês sem sotaque, embora a origem  do vinho fosse  chilena. Na verdade, ele parecia ter na cabeça um manual de harmonização,  com todos os vinhos de boas cepas e suas melhores companhias à  mesa.

Cheguei  a pensar que o Ernesto  agia  assim para me humilhar, em represália a alguma forma de bullyng que eu teria cometido ou consentido na nossa adolescência.  Por isso, depois de uma dessas sessões torturantes, decidi pegar pesado com ele, questionando seu modo de agir.  Foi então que, de forma quase inaudível, mas não envergonhada, Ernesto confessou a nova fase da sua vida:

-  Perdi o interesse  “naquilo”.  Dá muito trabalho, exige muita conversa antes e muita energia depois.  E ainda precisa tomar banho no fim, - justificou, enquanto mudava de tom:

- O verdadeiro prazer está na mesa! Bons pratos, acompanhados de vinhos de qualidade.  Não tem erro. E diferente “daquilo”, dá pra variar à vontade, sem  culpa, não se corre o risco de traições, podemos dividir os momentos prazerosos com parceiros masculinos e femininos sem provocar maledicências, as preliminares se resumem aos acepipes das  entradinhas  e a gente consegue repetir  o prazer mais de uma  vez ao dia, sem precisar de aditivo químico, a não ser o próprio vinho. É tudo  de bom! - acrescentou cheio de entusiasmo.

Quedei-me, por instantes, num silencio obsequioso depois de  tais  revelações, porque, afinal, passei a entender a motivação do Ernesto nos nossos encontros.  De certa forma compadeci-me da situação do amigo,  mas só me ocorreu uma espécie de  solidariedade:  anunciei que, por coincidência, estava cogitando participar de um desses cursos de vinho, além de me matricular numa escola de gastronomia. A reação do meu amigo foi de exultante aprovação:

- Maravilha. Vais conhecer o prazer verdadeiro, que não está na cama, mas na mesa.
Agora nossos encontros ganharam uma pauta adicional: a cobrança dele de quando vou me dedicar aos dois cursos. Ou seja, a  tortura foi ampliada, mas eu resisto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário