segunda-feira, 5 de março de 2018

Desapego


Nada é mais angustiante do que o desapego, seja de bens materiais, seja de pessoas.  Falo com conhecimento de causa, pois pressionado por instâncias familiares me vi na obrigação de me desfazer de algumas de minhas preciosidades, frutos de impulsos consumistas:  camisas azuis e livros empoeirados.  É bem verdade que numa verificação superficial contabilizei mais de 50 camisas, nem todas azuis, esclareço,  sem contar as polos, boa parte delas azuis, além das peças que foram subtraídas pelo meu filho Rafael.

Com dor no coração, quase derramando uma lágrima furtiva, comecei a sessão desapego, utilizando dois critérios que me pareceram justos diante de tão querido acervo:  descartar camisas com mangas e golas puídas e aquelas não usadas há mais de um ano.  Entretanto, se eu levasse ao pé da letra tais critérios, sobrariam apenas cinco ou seis camisas, que se revezam no meu dia a dia e permitem   que use as detestáveis gravatas. Me bateu aquela angústia, um agudo sentimento de perda, que  decidi não ser tão rigoroso.  E descartei menos do que devia.

Igualmente fui comedido para abrir espaço na estante de livros. Fiz doação ao acervo  que a Tânia Carvalho está organizando na Casa de Apoio Madre  Ana, da  Santa Casa, outro  tanto na Feira do Livro  para os presidiários, mais alguma coisa para a biblioteca bem organizada de uma escola pública do Menino Deus que reuniu autores durante uma gincana,  e distribuí exemplares  por locais públicos atendendo o chamado de um desses dias de Doar Livros. Em compensação, criei mais um espaço para livros, adquiridos  recentemente, junto ao Memorial Flávio Dutra, um armário onde exponho algumas peças e  equipamentos antigos, mas de grande valor afetivo, como uma máquina de escrever portátil e uma filmadora Super 8.

Quando vejo os livros ordeiramente colocados, tanto na estante principal como no Memorial, me questiono se terei tempo de ler todas as obras que esperam na fila por minha decisão de devorá-las, como o fazia antes de me dedicar mais as redes sociais do que a leitura. Mesmo assim reluto  em descartar o que não tem merecido minha atenção. Já tratei neste ViaDutra do tema do  desapego e lembro ter escrito que “fisicamente o espaço foi recuperado, mas há um outro espaço, o das lembranças, que se vai  junto com o descartável.  Se o que agora foi liberado resistiu tanto tempo junto da gente é porque certamente evocava boas lembranças. (...) Na verdade, é preciso uma boa dose de coragem para o desapego, que é renúncia e despojamento, mas que não deixa de ser também uma forma de traição ao abrir mão do que vale a pena recordar, substituindo por novos focos de atenção.” Por isso, apelo para que não me encarem como um acumulador,  sou apenas um sentimental, o que vale, sobretudo, para o desapego de pessoas, mas aí é conversa para outro momento.

Talvez tenha que dar razão a quem escreveu que “ afinal, se coisas boas se vão é para que coisas melhores possam vir. Esqueça o passado, desapego é o segredo”. De repente sou tentado a votar  com o relator, que seria o grande Fernando Pessoa. E se não for, assinarei embaixo assim mesmo.


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