segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O homem mais importante de Petrópolis


 
Minha avó paterna, dona Tarsila, também conhecida na família como Boneca, era  fâ de Érico Veríssimo, vizinho dos Dutra na parte alta da rua Felipe de Oliveira, no bairro  Petrópolis.  Ela já tinha lido todos os livros do escritor até  então publicados, na década de 40 do século passado, e alardeava para a  filharada e a  vizinhança:

- O Érico é o homem mais importante de  Petrópolis.

O  que ela não contava era com a forte oposição da filha mais  nova, minha tia  Vanda, que tinha oito ou nove anos e contestava a afirmativa materna:

- O homem mais importante do bairro  é o papai, -  dizia  a  guria, hoje uma lucida senhora octogenária, a  recordar a história  num encontro do clã.

- Mas por que tu achas que teu pai é mais  importante que o  Érico. – insistiu vó Tarsila.

- Porque papai tem curso superior o seu Érico não, nossa casa é maior que a dele, o papai tem carro oficial  na garagem e é amigo do presidente Getúlio Vargas, - argumentou tia Vanda.

Vicente Dutra, o pai da Vanda e meu avô, era formado em Medicina, mas já não exercia a profissão; fora prefeito de Iraí, construíra o balneário de termas que acabou virando cidade e ganhou seu nome no Norte do estado;  o carro preto na garagem era a mordomia  a que tinha direito  como diretor regional da Caixa Econômica Federal, nomeação direta  de seu amigo Getúlio Vargas.  E Érico Veríssimo, como se sabe, era filho de um boticário e ele mesmo um dono de  farmácia falido em Cruz Alta, que só conseguiu a estabilidade financeira  como diretor da Revista do Globo quando se transferiu para Porto  Alegre.  Ou seja, na visão da pequena vizinha, não fazia frente ao status e a situação financeira do seu amado pai.

Eis que a polêmica na morada dos Dutra chegou aos  ouvidos  de Érico por meio de uma amiga comum. Coube ao próprio escritor dirimir a dúvida no dia em  que bateu à  porta dos vizinhos e foi atendido por uma surpresa  Vanda:

- Minha criança, tens toda  a razão:  teu paí é o homem mais importante de Petrópolis, -  reconheceu o  generoso  Érico.

Em seguida presenteou dona Tarsila com um livro autografado, provavelmente "Olhai os Lírios  do Campo", obra que jamais foi localizada na morada da  Felipe de Oliveira -  uma construção à antiga,  que ainda hoje existe em frente à  caixa d´água da pracinha na esquina com a rua Borges do Canto.( Detalhe: a pracinha recebeu o nome de Mafalda Veríssimo, companheira de Érico por toda  a  vida).


O gesto de Érico, mais do que generosidade com uma criança, pode estar relacionado  com as diferenças  entre o seu  comportamento reservado, mais as dificuldades financeiras que a família  enfrentou,  e as atitudes de  seu pai  Sebastião, homem gastador e  mulherengo,  conforme relata no autobiográfico "Solo de Clarineta". Como não prestigiar a menina que, diferente dele, idolatrava o pai,  considerando-o tão maior que o já consagrado escritor?

Apesar disso, alguns anos após, Érico passou a se queixar das moças Dutra, que não o cumprimentavam mais. “Essas Dutras estão muito exibidas”, teria dito o escritor e o reclamo foi levado à dona Tarsila, que questionou as filhas:

-  Nós estudávamos  no Colégio Sevigne e as freiras  nos disseram para ficar longe do Érico, que teria escrito livros obscenos,- explica hoje, entre risos, a tia Vanda.

- Aí a mamãe disse que não era para dar atenção às freiras e que devíamos  cumprimentar, sim, o vizinho nas caminhadas dele pelo bairro, junto com dona Mafalda .-  acrescentou.

E assim a cordialidade e a civilidade voltaram a reinar na Felipe de Oliveira.

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