domingo, 3 de abril de 2016

Memórias póstumas

Da mesa ao lado, Marivalda dispara:

- Vô, nunca pensou em escrever tuas memórias?

A bem da verdade a pergunta não me pegou de surpresa. Desde que o ViaDutra foi ao ar, seis anos atrás, só o que tenho feito é resgatar vivencias, mais boas do que ruins, mais divertidas do que frustrantes, mais emocionais do que racionais. Mas muita coisa ainda pode ser contada e certamente é isso que move a indagadora Marivalda.

- Eu falo daquelas situações escabrosas em que tu estivestes  envolvido -, provoca ela.

Sou obrigado, então, a fazer uma revelação que pretendia tornar pública bem mais tarde. Premido pelas circunstâncias, uma vez que todas as mesas ao lado ficam em suspense a espera de uma declaração definitiva, abro o jogo:

- Já conclui minhas memórias, mas como tem muita gente envolvida e vou contar tudo, apontar nomes e situações, só autorizei a publicação cinco anos após meu passamento.

Preferi usar a expressão meu passamento porque achei mais adequada do que falar em morte, mas isso não impactou o ambiente e, sim, o fato de que revelações estarrecedoras prometidas pelas memórias póstumas poderão tardar muito tempo. É que, se depender das condições de saúde, meu passamento vai demorar.

- Pô, adianta alguma coisinha pra nós -, apela um

- Isso é crime de lesa informação, sonegar fatos importantes –, alega o outro jornalista presente.

- Pelo jeito tem gente muito importante envolvida. Homens e mulheres? -, tenta a moça curiosa.

- Como está a tua saúde? -, pergunta um provocador.

Mas não adianta a pressão. Mantenho-me em silencio obsequioso, só quebrado por uma informação que julgo importante antecipar.

- O material já está pronto e entregue a um jornalista para a revisão final. Só que ele não é muito confiável e temo que ocorra algum vazamento seletivo.

Foi como se tivesse ocorrido uma operação da PF, com o japonês à frente, tal o alvoroço provocado pela simples probabilidade de um vazamento de informações.  Houve quem afirmasse que grandes estripulias eróticas  viriam a tona, outros apostaram em malfeitos contra o erário público, ou, ainda, em delações inconvenientes. Enfim, não ouvi nenhuma versão mais edificante, o que não me surpreendeu nestes tempos de incertezas e moral em baixa, em que os valores perderam espaço para o vale-tudo.

De imediato, tratei de escapar do recinto, antes que a situação saísse definitivamente de controle. Acho que passei a correr riscos. Vou reforçar minha segurança pessoal, ou pedir asilo em alguma embaixada de país bolivariano. 

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