segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Viagens, viajantes e gastronomia

* Publicado nesta data em coletiva.net.

Tenho um certo fascínio por estes programas de tv sobre viagens e turismo. Existem até canais com uma grade totalmente dedicada ao tema, entre eles o Modo Viagem na tv por assinatura. O que me chama a atenção nessas atrações é que invariavelmente dedicam boa parte do tempo da produção à culinária do local visitado. Até parece que o programa é feito por esfomeados. É só conferir, por exemplo, o “Ruas pelo Mundo”, do  viajante  profissional Rodrigo Ruas, que também aproveita as incursões, enquanto degusta uma iguaria nativa qualquer,  para gravar em paralelo outro programa,  “O Mundo é uma Passagem”, com Anne Bueno, a mulher dele. E ela também aprecia uma boa comilança.

O Globo Repórter, que apelidei de Globo CVC Repórter devido a quantidade de viagens empreendidas pela inesquecível Glória Maria, igualmente reservava sempre um segmento do programa a uma mesa farta servida à repórter, seja numa tenda de beduínos no deserto, seja numa cidade de nome e culinária estranhos, lá no círculo ártico. Glória fazia caras e bocas diante do rango oferecido e, invariavelmente, acrescentava um “que delicia!”.

 Em certos casos, a gastronomia se sobrepunha às obrigatórias visitas à locais históricos, às paisagens tidas como de tirar o fôlego, ou às manifestações culturais dos povos visitados. De repente, uma indescritível aurora boreal é sucedida pela degustação de um prato com gosmentos moluscos.

A minha fascinação e eventuais implicâncias por tais programas talvez se deva ao fato de que sou um viajante muito ocasional – fiz minha primeira viagem à Europa só aos 60 anos -  e  sem qualquer propensão a experimentos culinários.  Quase tive engulhos quando assisti num extinto Manhatan Connection, ao apresentador Pedro Andrade descrever os tipos de comidas exóticas que tinha provado – e gostado! ,– nas viagens para seu programa solo, “Pedro Pelo Mundo”.

As viagens televisivas servem para mexer com a imaginação e as papilas gustativas de quem não pode sair mundo a fora, e aí  me incluo na categoria Invejoso Assumido.  Como já revelei,  sou um viajante de modestos roteiros e  absolutamente conservador à mesa, por isso já defini minhas preferências culinárias fora de casa: no Brasil, a inigualável à la minuta e, no exterior, a sempre presente comida italiana, pizzas e massas. Não tem erro, nem programa de viagem na TV que mude meu cardápio.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Ilustres quem

*Publicado nesta data em Coletiva.net.

A curiosidade do repórter que um dia fui renasce sempre que  ouço nos boletins radiofônicos alguns nomes de locais reportados. Exemplo: quem foi Hugo Cantergiani, que empresta seu nome ao movimentado, inclusive com assalto cinematográfico, aeroporto de Caxias do Sul? E Cezar Antonio Bettanin, muito citado como via de acesso à Expointer? Mais: quem era José Mauro Ceratti  Lopes.  que designa um posto de saúde na Restinga, sempre disponível nos fins de semana? Três “gringos”, como se observa

Nada melhor do que uma consulta ao Google para matar a curiosidade sobre eles.

De todos os nominados, tive algum tipo de relação com o empresário Cézar Antonio Bettanin, precursor da indústria de plásticos no RS. Empreendedor e visionário. fundou o grupo de empresas que leva seu sobrenome, instalado em Esteio, na vizinhança do Parque Assis Brasil, o que justificaria a homenagem. Meu irmão Telmo foi de vendedor à diretor na Bettanin, reportando-se diretamente ao seu Cézar, como era conhecido. Ambos já são falecidos. A avenida com o nome de Cezar Antonio Bettanin foi inaugurada em 2014 e hoje facilita o acesso ao Parque.

Hugo Cantergiani teve uma vida breve, mas que pode ser caracterizada como intensa. Nascido em Caxias, fez carreira na Aeronáutica no Rio de Janeiro e, entre seus feitos, está o de ter escrito “Brasil” com fumaça no céu carioca, recebendo elogios do então presidente Getúlio Vargas. Cantergiani morreu aos 39 anos em um acidente aéreo, durante um voo de instrução em 1937, que vitimou também o aluno César Vasconcellos. Em 1964, por unanimidade, a Câmara de Vereadores de Caxias do Sul aprovou o nome dele para batizar o aeroporto regional da cidade.

Médico formado na Universidade Católica de Pelotas e mestre em Educação pela UFRGS,  José Mauro Ceratti Lopes destacou-se pela contribuição para o desenvolvimento da especialidade de médico da família e da comunidade. Autor de obras de referência sobre a especialidade, ganhou o Prêmio Jabuti 2013 de Melhor Livro Ciências da Saúde com o Tratado de Medicina de Família e Comunidade. Implantou o Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, onde atuou por mais de 35 anos. A primeira Clinica da Família de Porto Alegre foi inaugurada na Restinga com o nome de José Mauro Ceratti Lopes em 2018.

Todos, portanto, mais do que merecedores das homenagens que hoje devem orgulhar seus familiares. 

Já eu fico pensando se quero legar aos meus pósteros o eventual tributo que alguma autoridade generosa deseje prestar a minha honrada memória quando eu me for. Até já escrevi a respeito, preocupado em não poder antever o futuro e impedir que a Travessa Flávio Dutra, ou algo do gênero, passe a figurar nas páginas do Diário Gaúcho com menções pouco elogiosas. Chamadas do tipo “Traficantes tomam conta do Beco Flávio Dutra”, ou “Prostituição infesta praça Flávio Dutra”, ou ainda “Ruela Flávio Dutra virou foco de lixo”,  ou a pior  - “Ninguém aguenta o mau cheiro da Flávio Dutra”.  Vou me remexer na cova.  O que me conforta é que ainda vai demorar muito até eu virar homenageado.

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Recomendações aos eleitores e a Dialética Erística

* Publicação nesta data em Coletiva.net

Ano de eleição é ano de escolhas, que vão influir no nosso dia a dia para o bem ou para o mal. Por isso, me atrevo a fazer essas recomendações aos eleitores menos afeitos às artimanhas da política. Não vá atrás do candidato que diz ‘Vem Comigo”. Você pode entrar numa fria. Preste atenção no que conclama “Você me conhece”, porque é um ilustre desconhecido.  Desconfie dos que são “contra a velha política”, porque estão prenhes de vontade de fazer parte dela. Não leve a sério os que usam em vão o santo nome do “povo”  e relativize quem diz que defende ardorosamente o “estado democrático de direito”, porque pode estar diante de um autoritário raiz. Nas eleições, mais vale o que parece do que aquilo que é falado.

Dito isso, confesso que tenho uma inveja danada desse pessoal mais apetrechado intelectualmente que consegue definir pessoas e situações com uma frase, uma tirada. O saudoso  ex-deputado Ibsen Pinheiro, um frasista talentoso, falava de um dos seus tipos inesquecíveis,  o Banal Solene, exemplificando com  um colega de parlamento e conhecido homem de comunicação, como ele. O sujeito usava citações do tipo “os rios correm inexoravelmente para o mar”, uma lição que qualquer  criança do nível fundamental já sabe, mas que dita com a devida formalidade e acompanhada de um advérbio, ganhava uma conotação de ineditismo e frase de efeito.  

Em tempo de campanha eleitoral, faço essa introdução sobre os ardis que a maior ferramenta que possuímos, a palavra, pode mostrar, a propósito de um livro que encontrei num balaio na  Feira do Livro de Porto Alegre. O título já  diz  tudo:  “38 estratégias para  vencer qualquer debate’, com o subtítulo  “A arte de ter razão”. Trata-se  de uma preciosidade, com métodos  e truques no uso das palavras na argumentação,  escrito por Arthur Schopenhauer, filósofo alemão que viveu entre 1788 e 1860. Mais de dois séculos depois, a obra se mantém atual como nunca e poderia servir de manual para qualquer  campanha eleitoral moderna, ou como afirma o linguista alemão Karl Otto Erdmann (1858-1931) na apresentação do livro “ (...) até mesmo em discussões  acadêmicas nos deparamos hoje com os mesmos truques utilizados há séculos”, muitos deles remontando aos  escritos de  Aristóteles (384 AC - 322 AC),  sempre citado pelo autor.  Partindo desses escritos, Schopenhauer desenvolve sua Dialética Erística, a arte de discutir de modo a ter razão.

Aqui vão algumas das estratégias elencadas pelo filósofo alemão. São aparentemente simples, mas diretamente eficazes para vencer debates.

Estratégia 9: “Disfarce seu objetivo final”, de forma que o oponente não saiba aonde você quer chegar e não possa se precaver.

Estratégia 20: “Não arrisque num jogo ganho”, se as premissas foram aceitas pelo oponente, não buscar nova confirmação, mas apresentá-las como verdades absolutas.

Estratégia 28: “Ganhe a simpatia da audiência e ridicularize o adversário”, aplicável especialmente quando pessoas  cultas discutem diante de uma plateia leiga.

Algumas estratégias são auto explicáveis como as de numero 29 –“ Não se importe em fugir do assunto se estiver a ponto de perder” – ou a 36 -  “Confunda e assuste o oponente com palavras complicadas.”

A cada uma das estratégias corresponderia  um exemplo no atual momento politico brasileiro ou em episódios  recentes, como a 32, que os editores do livro no Brasil (Faro Editorial) escolheram para ilustração. O enunciado é “ Cole um sentido ruim na proposta do outro”  e o exemplo é o ataque do então candidato  Bolsonaro, com a ideia do Kit  Gay, à campanha do Ministério da Educação para  combater a homofobia. A pregação amedrontou a população mais  conservadora e desinformada e, como resultado, conseguiu que vários políticos deixassem de apoiar o projeto.

O rol de dissimulações e pragmatismo do livro de Schopenhauer se encerra com esta pérola na estratégia 38: “Como último recurso parta para o ataque pessoal”, bem assim, no melhor estilo Pablo Marçal, em São Paulo, deixando de lado o assunto em discussão (porque ali o jogo está perdido) para atacar de forma ofensiva e rude o adversário como última esperança de vencer o confronto. O autor ressalta que se trata de um truque muito apreciado, pois pode e costuma ser usado por qualquer um, por isso assume como única regra segura contrária aquela que Aristóteles (sempre ele) apresentou no último capítulo dos Tópicos:  não discuta com o primeiro que aparecer, mas só com quem tem conhecimento suficiente para não dizer coisas absurdas, que dispute com argumentos e não com afirmações de força e que valorizem a verdade.

Pelo visto, Schopenhauer e Aristóteles não tinham nada de banais, nem de solenes.