segunda-feira, 5 de março de 2018

Desapego


Nada é mais angustiante do que o desapego, seja de bens materiais, seja de pessoas.  Falo com conhecimento de causa, pois pressionado por instâncias familiares me vi na obrigação de me desfazer de algumas de minhas preciosidades, frutos de impulsos consumistas:  camisas azuis e livros empoeirados.  É bem verdade que numa verificação superficial contabilizei mais de 50 camisas, nem todas azuis, esclareço,  sem contar as polos, boa parte delas azuis, além das peças que foram subtraídas pelo meu filho Rafael.

Com dor no coração, quase derramando uma lágrima furtiva, comecei a sessão desapego, utilizando dois critérios que me pareceram justos diante de tão querido acervo:  descartar camisas com mangas e golas puídas e aquelas não usadas há mais de um ano.  Entretanto, se eu levasse ao pé da letra tais critérios, sobrariam apenas cinco ou seis camisas, que se revezam no meu dia a dia e permitem   que use as detestáveis gravatas. Me bateu aquela angústia, um agudo sentimento de perda, que  decidi não ser tão rigoroso.  E descartei menos do que devia.

Igualmente fui comedido para abrir espaço na estante de livros. Fiz doação ao acervo  que a Tânia Carvalho está organizando na Casa de Apoio Madre  Ana, da  Santa Casa, outro  tanto na Feira do Livro  para os presidiários, mais alguma coisa para a biblioteca bem organizada de uma escola pública do Menino Deus que reuniu autores durante uma gincana,  e distribuí exemplares  por locais públicos atendendo o chamado de um desses dias de Doar Livros. Em compensação, criei mais um espaço para livros, adquiridos  recentemente, junto ao Memorial Flávio Dutra, um armário onde exponho algumas peças e  equipamentos antigos, mas de grande valor afetivo, como uma máquina de escrever portátil e uma filmadora Super 8.

Quando vejo os livros ordeiramente colocados, tanto na estante principal como no Memorial, me questiono se terei tempo de ler todas as obras que esperam na fila por minha decisão de devorá-las, como o fazia antes de me dedicar mais as redes sociais do que a leitura. Mesmo assim reluto  em descartar o que não tem merecido minha atenção. Já tratei neste ViaDutra do tema do  desapego e lembro ter escrito que “fisicamente o espaço foi recuperado, mas há um outro espaço, o das lembranças, que se vai  junto com o descartável.  Se o que agora foi liberado resistiu tanto tempo junto da gente é porque certamente evocava boas lembranças. (...) Na verdade, é preciso uma boa dose de coragem para o desapego, que é renúncia e despojamento, mas que não deixa de ser também uma forma de traição ao abrir mão do que vale a pena recordar, substituindo por novos focos de atenção.” Por isso, apelo para que não me encarem como um acumulador,  sou apenas um sentimental, o que vale, sobretudo, para o desapego de pessoas, mas aí é conversa para outro momento.

Talvez tenha que dar razão a quem escreveu que “ afinal, se coisas boas se vão é para que coisas melhores possam vir. Esqueça o passado, desapego é o segredo”. De repente sou tentado a votar  com o relator, que seria o grande Fernando Pessoa. E se não for, assinarei embaixo assim mesmo.


sábado, 24 de fevereiro de 2018

El Netflix


                                          A Casa de Papel
Entre as dezenas de séries disponíveis no Netflix chama atenção o destaque dado às produções espanholas e ao protagonismo das mulheres nessas séries.  Antes de mais nada deixem confessar que fico encantado com o espanhol da Espanha, com aquela fala mais macia, meio língua presa.  Por isso, fico ligado nos diálogos, curto muito a pronuncia e não deixo de observar os pecados cometidos pelos nossos tradutores. 

Mas eu queria mesmo era falar sobre a enxurrada de séries espanholas na plataforma de streaming, a começar pela elogiadíssima A Casa de Papel, um roteiro surpreendente, de tirar o fôlego e atuações que correspondem à repercussão conquistada por essa produção.  O título é referência ao espaço onde se desenrola a trama, a Casa da Moeda  da Espanha, e mais não antecipo dessa que é considerada a melhor série espanhola de todos  os tempos.  Vale, porém, destacar o elenco feminino a começar pela bela Ursula  Corberó, no papel de Tokyo, passando pela jovem Maria Pedraza (a estudante Alisson Parker) e a madurona Itziar Ituño, que interpreta a inspetora Raquel Murilo.

As protagonistas femininas são destaques também em pelo menos três outras séries espanholas, entre elas Tempos de Guerra, que registra – com uma boa reconstituição de época – a verdadeira  aventura de enfermeiras voluntárias da elite de Madri na cidade de Melila, no Marrocos, durante a Guerra dos Rife nos anos 20 do século passado. Conferi metade da primeira temporada e recomendo.  Ambientada no mesmo período, As Telefonistas conta a história de quatro mulheres de diferentes origens contratadas por uma empresa de telefonia, uma nova realidade que abria espaço de trabalho para as mulheres. Assisti ao primeiro episódio e confesso que não me entusiasmei. A história dos espanhóis  é marcada por conflitos e isso está presente na série O Tempo Entre Costuras, que acontece  durante  a Guerra Civil Espanhola, narrando  como a jovem costureira Sira Quiroga (Adriana Ugarte) se torna uma espiã  para ajudar seu país. Os primeiros episódios a que assisti me autorizam a recomendar a série.

Sobre Merli, uma série adolescente (Malhação à espanhola?) tenho poucas referencias, exceto que gira em torno de um professor de filosofia do ensino médio que utiliza  métodos poucos convencionais para inspirar seus alunos. Já O Ministério do Tempo remete inevitavelmente ao seriado O Túnel do Tempo dos anos 1960. Essa releitura reúne um guerreiro do século 16, uma estudante do século 19 e um enfermeiro do século 21,  que se juntam em uma agencia secreta para viajar no tempo e evitar mudanças na história. A série vem precedida de boas recomendações e já me agendei para assistir, assim que conseguir vencer as temporadas de A Casa de Papel e Tempo de  Guerras.

As séries espanholas são uma amostra do investimento pesado da Netflix na distribuição de produções não americanas, como as inglesas – ótimas -  The Crow e Black Mirror, a alemã Dark, a dinamarquesa Rita e até as colombianas  La Nina e Narcos (coprodução com os EUA), além do anuncio de que pelo menos cinco seriados da Índia farão parte do cardápio do sistema. Agora mesmo fico sabendo que a segunda série mais “devorada” em todo o planeta, seja lá  o que isso significa, é  a brasileira 3%, que apresenta um mundo pós-apocalíptico onde apenas 3% das pessoas são bem sucedidas e seguem adiante.  Confesso meu desconhecimento sobre a série nacional, assim como a primeira colocada no ranking da devoração, a American Vandal, sobre a história de um  crime em uma escola da Califórnia.

E já  que estou numa fase confessional, devo revelar que só inventei este texto para poder me exibir escrevendo  “plataforma de estreaming”, mas acabei esquecendo de incluir spoiler que também gostaria de escrever para parecer moderninho.






sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Huck, FHC, Macron


Só os muito tolos ou os que sempre acreditam em movimentos conspiratórios, igualmente tolos,  para imaginar que a Rede Globo estava por trás da já descartada candidatura presidencial de Huck.  Nem é preciso muito exercício mental para concluir que a Globo só tinha a perder com a candidatura de sua estrela dos sábados à tarde.  Se a campanha prosperasse, em caso de uma provável derrota de Huck, a Globo também seria derrotada, abalando sua credibilidade cada vez mais contestada. 

Em caso de uma não impossível  vitória, a Globo perderia duplamente:  perderia um campeão de audiência e de faturamento, mais a esfuziante Angélica, que certamente deixaria a TV para acompanhar o maridão ao Planalto.  Haveria, ainda, um terceiro prejuízo para a Globo, que seria encarada como fiadora do governo de um inexperiente Huck, para o bem e para o mal, mas com a pressão permanente e inerente ao mais alto cargo da nação e por quatro anos!  A lição da era Collor foi aprendida.

Na verdade, quem surgiu como avalista do apresentador global, ou melhor, quem deu corda para a candidatura dele nos últimos dia, foi o ex-presidente FHC.  Qual seria o propósito desse apoio velado, uma vez que os tucanos  têm outros postulantes de plumagem mais alta, como o experiente Alckmin? Sou tentado a me aliar à tese que li numa das colunas políticas do centro do País, cuja autoria me escapa.  Seria o seguinte: FHC, enciumado, quer competir com Lula na indicação de um “poste” com viabilidade eleitoral,  para mostrar que ainda tem tanto prestígio como o petista.

FHC sonharia também em construir um Macron tupiniquim,  sem levar em conta que o jovem presidente francês (40 anos) já militava no Partido Socialista desde 2006, foi secretário-geral da presidência da República e ministro da Economia antes de se candidatar ao cargo, além da vasta experiência como banqueiro e da formação, com mestrado, em Politicas Públicas. Ou seja, encarna o novo, mas não é neófito, enquanto Huck se especializava em reformar carros e casas nos quadros mais populares de seu programa televisivo. A única vantagem do brasileiro sobre o francês é que Angélica é bem mais jovem e bonita  do que a primeira-dama francesa,  Brigitte Marie-Claude Macron, 24 anos mais velha que o marido.

Quanto a sua  participação no processo eleitoral, a Globo vai aguardar o resultado do pleito e os acenos amistosos do vencedor...


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Sexo, mentiras e Carnaval

* Reeditado a partir do original publicado em 06/11/2009, mas continua atual como nunca

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Parafraseando Fernando Pessoa, o infiel é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é real, o fingimento que deveras finge. Com o perdão do poeta, submetemos a apreciação do prezado público nosso enfoque sobre o fingimento - aqui com conotação de mentira -, em sua relação indissociável com o adultério. E adicionamos a oportunidade representada pelo Carnaval.

A premissa básica é que não existe adultério sem mentiras. Entretanto, há uma tênue linha separando o exercício de enganar o próximo por necessidade da mentira por compulsão. Conheço sujeitos que se dedicam a infidelidade só para poder mentir, quando o correto seria mentir para continuar traindo. Uma é arte, a outra é patologia.

Mas o que é a mentira, além de um pecadilho venial? O celebrado Guy Durandin, autor de As Mentiras na Publicidade e na Propaganda, sustenta que a mentira contempla quatro operações: omissão, ampliação, redução e invenção. Todas elas revelam que o autor da mentira busca fragmentos do real, ou seja, no fundo é um bem intencionado.

A invenção! É neste tópico que os infiéis se consagram em busca do estado da arte em termos de explicações para suas práticas extraconjugais. Há um clamor por exemplos. Selecionamos dois.

P., executivo de multinacional, se esbaldou em um baile pré-carnavalesco e acabou a noitada com uma havaiana, mulher do tipo "aprecie sem moderação". Um resultado perverso do encontro é que ficou todo adesivado com purpurina, aquelas estrelinhas que inventaram para atazanar os infiéis do período momesco. De quebra, nosso executivo tinha confetes até na raiz dos cabelos.

O que fazer se no final da tarde iria se encontrar com a família na praia? A purpurina é resistente até ao mais caprichado banho e os confetes entranham nas roupas e se escondem nas dobras mais complicadas. Chega a hora em que serão descobertos, você sabe por quem. Mas o nosso executivo era um homem de sólida formação em planejamento estratégico, com especialização em gestão de riscos, e logo montou um plano emergencial para justificar as purpurinas e os confetes. Antes de seguir para o litoral passou numa loja especializada e comprou dois sacos de purpurina e outros tantos de confetes. Levou ainda três rolinhos de serpentina, máscaras de papelão para as crianças e, num toque de safadeza, um colar de havaiana para a mulher.

Ao chegar à casa da praia, foi recebido com alegria pela família e ficou contagiado, quase comovido, pela recepção tributada a um chefe de família que passara a semana ralando na Capital. E desceu do carro extravasando as emoções que o momento exigia:

- Alegria, alegria! É Carnaval, venham, venham, - convocava aos familiares.

Para reforçar o clima carnavalesco o som do carro reproduzia antigas marchinhas. Tudo fora previsto. E quando a família estava bem próxima ele começou a jogar para o alto as purpurinas e os confetes, todos ficaram impregnados, comungaram daquela espontaneidade e ele não precisou justificar nada. À noite, com as energias que ainda lhe restavam, foi exigido sexualmente pela mulher que, a pedido dele, usava apenas o colar de havaianas...Agiu como um “serial killer” que deixa sua assinatura nas vítimas.

Conheço também casos de quem se deu mal. Lá pelos anos 60 do século passado,  amigo contabilista, profissional competente e chefe de família exemplar, alegou um congresso da categoria no Rio e para lá viajou dias antes do Carnaval.  Voltou  uma semana depois, justo no dia em que a aguardada revista Manchete, edição especial do Carnaval,  chegava às bancas, adivinhem com quem sobraçando uma mulata semivestida -  ou muito despida -  numa foto de pagina inteira? Ele mesmo, com seus óculos de grossas lentes, como se fosse a denunciadora firma reconhecida de que era ele mesmo, e na cabeça um ridículo quepe de marinheiro,  a guisa de fantasia.
Resumo do enredo carnavalesco:  nosso mestre sala dos mares  foi chutado de casa, mas ganhou a admiração da gurizada do bairro graças a escultural mulata  daquela noite transgressora.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Viva as confrarias ou coitado do Juremir


A psicóloga canadense Susan Pinker,  que encerrou  o ciclo de 2017 do Fronteiras do Pensamento,  fez uma revelação sobre a  qual, modestamente, eu já  havia intuído há muito tempo: o segredo da longevidade está nas redes de relacionamento que nos mantem em constante interação.  Quanto mais próximos estivermos dos nossos afetos, mais chances  teremos de chegar de forma saudável aos 100 anos ou mais.  Um abraço vale mais do que qualquer mensagem digital,  porque estabelece a proximidade e provoca reciprocidade efetiva e afetiva.

Em termos de longevidade, isso tem mais peso  do que deixar de fumar ou  respirar ar mais puro, como constatou a terapeuta na sua pesquisa de campo na ilha da Sardenha (Itália), que resultou na obra The Village Effect (sem tradução no Brasil).  Nas visitas às casas do vilarejo de Villagrande, Susan verificou, por exemplo, que todos os moradores  mantém fortes laços com familiares, amigos, vizinhos e conhecidos. Filhos, mesmo morando longe, visitam a família pelo menos uma vez por semana.  Causa e efeito,  o numero de idosos centenários na localidade é 10 vezes do que nos Estados Unidos e no resto da Europa.

Pois, ao afirmar, pretensiosamente, reconheço agora,  que já havia intuído o que prega a conceituada conferencista é porque há muitos anos tenho dedicado parte do meu tempo livre à interação com os meus pares via confrarias.  Já participei e participo de várias, entre as quais a mal afamada Confraria da Caveira Preta, que reunia um grupo de jornalistas em  volta de comida farta, boas bebidas e conversas difamatórias sobre os ausentes.  Porém,  lamento  admitir que,  diferente do que constatou o estudo da especialista, a taxa de letalidade nas minhas confrarias tem sido alta,  talvez porque não baste o encontro e a interação quando o ambiente é a complexidade da metrópole e seus estresses, em contraste com um bucólico lugarejo incrustrado nas montanhas da Sardenha. Não resisto a uma tese!

Fico com o exemplo da Caveira Preta, que  se extinguiu tempos atrás, após a morte do querido patrono , Evaldo Gonçalves e, inevitavelmente, sofreu outras perdas ao longo dos anos, como a do Emanuel Mattos e mais recentemente do Paulo Sant`Anna e do Wianey Carlet, sem contar os casos em que bateu na trave. Mas, também, pudera:  a Caveira Preta,  até para justificar o  nome, era dada a uma mórbida competição, que consistia na listagem, feita no início do ano, dos que se pretendia que fossem chamados para outra dimensão durante o período.  Cada confrade tinha direito a 10 votos e quem acertasse o maior número de vítimas não pagava o jantar de fim de ano.  Valia incluir desafetos, gente pela bola sete e personalidades em geral. Os indicados não podiam ser repetidos nas diferentes listas.  De tanto ser votado, o Sant`Anna decidiu também participar da confraria e ganhou imunidade, mas só naquela congregação e por prazo limitado... 
O Juremir Machado teve mais sorte:  ao ser julgado por excesso de faltas, escapou da expulsão porque, como relator do processo, pedi vistas, salvando a participação do talentoso e polêmico parceiro.  O caso está sub judice até hoje e o coitado do Juremir agora enfrenta outra batalha, ele que está sendo bombardeado pelas esquerdas raivosas por ter convidado o guri do MBL para o seu programa na Rádio Guaíba no dia do julgamento do Lula no TRF-4. A outra  convidada, a filósofa Marcia Tiburi,  teve um faniquito quando viu o japonesinho entrar  no estúdio e abandonou o programa. O Juremir explica, justifica, se desculpa, mas não adianta. O barraco está no ar.  Aí não adianta buscar refúgio na confraria.

Também resta concluir  que,  com o nível de perversidade da Caveira  Preta, agregado a outro tanto de bobagens, ficaria difícil mesmo que as teses da doutora Susan se confirmassem naquele ambiente.  Mas que era divertido, era. E deixou saudade.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

O homem que eu invejava


                                       Placa em Portugal e a travessa em Porto Alegre     

O jornalista Antônio Goulart, como interino do meu primo Kadão Chaves na bem frequentada página Almanaque Gaúcho, da Zero Hora, começou uma série de matérias resgatando ruas de nomes curiosos em Porto Alegre. Vale a pena a leitura e também a colaboração dos leitores de todas as cidades, conforme convocação do próprio editor. Pois bem, me antecipei a esse chamamento e reeditei uma crônica de março de 2003 sobre uma das artérias de nome mais curioso – e que se presta a interpretações dúbias – da Capital dos gaúchos. Aí está:

O saudoso Carlos Urbim, em uma de suas viagens à Europa,  postou no Face a foto da placa de uma rua de Lisboa, que segundo o talentoso escritor, dá medo de passar. Pudera, o logradouro lisboeta chama-se Rua do Capado.

São coisas assim que atiçam a minha imaginação. Quem seria o pobre sujeito que teve extirpado seu órgão? O que teria feito para merecer esse infortúnio? Deve ter sido algo de magnitude para ganhar uma rua só pra ele. É o tipo da homenagem da qual eu abriria mão, primeiro pelo motivo que deu causa ao tributo – o único órgão que admito perder e já perdi é o apêndice; e depois, como bem disse o nosso Quintana, “um engano em bronze é um engano eterno” – no caso do Capado, um engano em azulejo português, menos mal.

A postagem do Urbim remeteu-me quase de imediato para o  nome de um espaço público em Porto Alegre que sempre me intrigou e não poucas vezes foi motivo de piadas de baixa extração. Trata-se da Travessa Mário Cinco Paus! Fica no centro, entre a chamada Prefeitura Nova e um prédio do INSS, ligando o final da avenida Borges de Medeiros ao terminal de ônibus da rua Uruguai.  Em tempos idos, já foi um beco, mas recebeu um trato, foi ajardinado e hoje é local de grande circulação.

Isso posto, eis a pergunta que não quer calar: quem foi Mário Cinco Paus, o homem que sempre invejei desde a adolescência, quando só pensava naquilo? Teria mesmo o nosso Mário cinco órgãos genitais?  Como funcionariam: em paralelo, se completando, como pistões de um carro, uns subindo outros descendo? Era um homem realizado e de bem com a vida com seu instrumental diferenciado? E as parceiras do bom Mário como reagiam diante de cinco espetáculos do crescimento? E as pobres filhas do Mário, com esse sobrenome invulgar,  como devem ter sofrido  com brincadeiras de mau gosto, o antigo nome do bulling, nas escolas e outros locais que frequentavam?

Essas indagações, pertinentes e profundas acerca de um personagem da cidade, me acompanharam até os dias de hoje, quando resolvi pesquisar para saber quem foi Mário Cinco Paus.  Aí todas as bobagens que imaginei caíram por terra. O Mário Cinco Paus nada mais era do que um rábula, advogado não formado, que viveu na cidade no século passado. Ficou famoso pelos júris que defendeu e era apreciado pela classe jurídica de Porto Alegre. A alcunha que acompanha o sóbrio nome de Mário seria derivada de sua maestria  no popular jogo do pausinho, que reunia intelectuais, frequentadores da Livraria do  Globo e jovens advogados em animadas rodadas no Chalé da Praça XV. O dr.Mário costumava limpar seus oponentes no jogo do palitinhos. No primeiro governo do prefeito Loureiro da Silva (1937 a 43) esta figura quase folclórica foi homenageada com o pequeno trecho de pouco mais de 30 metros.
A placa de identificação do trecho revela que foi um filantropo, talvez por falta de outros predicados para ser em destacados, além de algo como O Rei do Pausinho ou O Mestre do Palitinho. Convenhamos, não ficaria bem.
E lá se foi minha inveja e meu complexo de inferioridade.

Março/ 2013

domingo, 21 de janeiro de 2018

Um tributo aos assessores de imprensa


Cada vez que um órgão público é cobrado porque falhou no cumprimento da sua missão, ou é provocado a  dar explicações sobre o inexplicável, juro que me compadeço dos assessores de imprensa dessas instituições. Imagino os  coitados  se debatendo, aflitos e desamparados, buscando formas para enfrentar a crise do momento.  Fico penalizado até mesmo com a assessoria do Instituto Lula, a emitir  notas oficiais quase diariamente para contrapor às  denuncias, tantas e tão  frequentes, contra o ex-presidente. O  Jornal Nacional chegou a criar uma vinheta gráfica para demarcar as versões dos acusados e, assim, justificar que ouviu ou tentou ouvir todos  os lados, uma prática ainda válida  para  o jornalismo.

Agora mesmo acompanho a  tentativa do Detran do Rio de Janeiro de explicar porque  o sujeito que atropelou os caminhantes do calçadão de Ipanema, mesmo com mais de 60 pontos  em multas, abriu processo  para ter uma nova carteira de motorista. Vão explicar, explicar e não vai adiantar nada. Mesmo  que tivessem uma explicação convincente - e  não é  o caso – a versão que vai ficar é de um órgão burocrático, ineficiente e sem controle sobre os processos de sua responsabilidade. 

Na raiz da minha solidariedade à aguerrida tribo dos assessores de imprensa de órgãos públicas está o fato de que já  frequentei esse lado do  balcão. Na Prefeitura  de Porto Alegre, no governo do Estado e na Assembleia  Legislativa tive  experiências enriquecedoras, a maioria, mas traumáticas muitas vezes.  No âmbito municipal, prestador  de serviços por  natureza, um bico de luz apagado na frente da sua casa pode virar crise, o  que dirá dos buracos nas ruas, da água que falta,  da capina atrasada e das obras paradas. No governo do Estado e na Assembleia a cobrança é direcionada mais  para as questões políticas, terreno igualmente  minado.  Os  governantes e os parlamentares são, permanentemente, grandes vidraças.

Confesso que fico aliviado quando não  estou envolvido com os  rolos que aparecem na mídia dia sim, outro também.  Pode  ser um sentimento  menor, mas é assim que funciona. Até tentei, tempos atrás, contribuir com a  categoria, ao produzir um TCC no final do MBA em Jornalismo Empresarial, na então Esade, que intitulei pretensiosamente de Vida real em assessoria de imprensa de gestão pública:  pragmatismo em dez mandamentos.  

Pra resumir, diria  que me agradam especialmente dois mandamentos. Um deles é  o sexto, mas deveria ser o primeiro: "Tenhas consciência de que se o governo é bem avaliado, o mérito é do governante; caso contrário, a culpa é da comunicação".  Esse mandamento foi inspirado numa frase parecida, que ouvi de Ibsen Pinheiro, a quem tive a honra de substituir na Comunicação do Palácio Piratini, no governo Rigotto. O outro é o quarto mandamento: "Estejas sempre alerta porque alguém, em algum lugar, está provocando problemas sobre os quais você terá que responder",  dando conta de que serviço público tem costas largas e responde por suas mazelas e, muitas vezes, por  outras que lhe dizem respeito apenas secundariamente. Mas a cobrança vem igual e é preciso estar  atento e forte.

Para que este textão não vire um novo TCC, encerro como conclui o trabalho acadêmico: caberia incluir o 11º mandamento, talvez  o mais importante - "No serviço público, de tédio não  se morre".


sábado, 13 de janeiro de 2018

O livro errante


Sou chegado a uma tese. Mania de jornalista. Muitas vezes a realidade não colabora e a tese não se confirma. Agora na condição de cronista, devidamente publicado, reforcei a ideia – a tese! – de que escritor que se preza tem que ter obra nos balaios de ofertas da Feira do Livro de Porto Alegre, além de presença nas estantes dos sebos da cidade e ser vendido como usado pelas livrarias digitais. Já adquiri verdadeiras preciosidades nos balaios da Feira e depois que encontrei até best sellers  de Paulo Coelh nesses balaios, anunciados a  dois por R$ 15,00, tive a confirmação da tese.

Por  enquanto, galguei apenas dois degraus rumo ao reconhecimento a que almejam todos os que engatinham nas artes da escrita. Os livros  que escrevi ou participei  (Crônicas da Mesa ao Lado, Dueto e DezMiolados) podem ser encontrados em pelo menos três livrarias e numa delas (a Nova Roma, na rua General Câmara) dividem a vitrine de sebos com outras obras, a maioria de autores bem mais consagrados. Para mim não importa se as companhias são mais ou menos famosas: ali o que diferencia um livro do outro é o preço aplicado com post it nas capas. As capas, aliás, devem chamar a atenção de quem passa, como bem apregoa meu capista preferido, o Cézar Arruê. É o caso do Crônicas e do Dueto.

Agora descobri que também passei a fazer parte do circuito das livrarias digitais. Em pesquisa sobre outro  assunto acabei me deparando com a oferta do Crônicas  na Estante Virtual ( https://www.estantevirtual.com.br/livrariamosaico/flavio-dutra-cronicas-da-mesa-ao-lado-451984851). O livro é apresentado da mesma forma como o autor  se autodenomina - Seminovo/Usado -  e a origem declarada do exemplar é a Livraria Mosaico, de Porto Alegre. Não sei como o livro foi parar lá. Acho até que perseguir a trajetória  desse exemplar poderia resultar num bom conto. Daria o título de  “O livro errante”, que tal? Vai ver que o comprador original precisava de uma grana e acabou sacrificando o Crônicas e desfalcando sua biblioteca.  Gosto dessa  hipótese porque revelaria uma utilidade altruística para o livro, algo que o autor  jamais  imaginou ou sequer ouviu nas conversas da mesa  ao lado.

Vale  acrescentar a descrição do site para as condições do exemplar oferecido: "Bom estado de conservação, sem páginas sublinhadas ou danificadas. Acabamento: Brochura. Formato: Médio. Exemplar higienizado". O preço é  convidativo: R$ 15,00, mais R$ 6,21 pelo envio (o preço original era R$ 25,00)  e, veja só, pode ser parcelado em até12 x no cartão de crédito.

O  que me intriga ainda mais é  que existe um outro exemplar  oferecido no Sebo Fulô, em Santa Maria, a R$17,00 mais R$8,21 pelo envio ( aceita parcelamento em 12 x). Também desconheço como esse outro desgarrado Crônicas foi parar na Boca do Monte. Pode ser uma outra boa história a ser desvendada.

Sabem o que tudo isso significa: nada para a maioria ou a glória para um autor iniciante.



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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Eles mudaram o curso da história


Não estou me referindo a qualquer liderança politica e sim a uma categoria nem sempre reconhecida: os motoristas profissionais. São eles que sabem a direção certa, os melhores caminhos e, quando chamados a participar das grandes decisões , respondem com integridade e até influenciam no curso da história. Exemplos recentes não faltam. O caso mais notório é  do ex-motorista de Fernando Collor, Eriberto França, que  denunciou  pagamentos indevidos ao  então presidente e isso foi decisivo no processo que resultou no impeachment.

Só que a realidade, às vezes, é cruel, tanto assim que Eriberto, conhecido como o “motorista que derrubou Collor”, amargou o desemprego por um bom tempo, enquanto o ex-presidente voltou ao Senado e às maracutaias, uma vez que tem sido citado com assiduidade como envolvido na Lava Jato.

Não é motorista, mas mesmo assim merece o registro pelas atitudes que tomou, o caseiro Francenildo  Costa em meio ao escândalo do Mensalão. Ele denunciou os contatos de Antonio Palocci, então ministro da Fazenda de Lula,  com lobistas desejosos de “negociar” com o governo ,  teve seu sigilo bancário quebrado, o que acabou servindo para tornar insustentável a permanência do denunciado no cargo.  

Francenildo  também enfrentou o desemprego, mas, se serve de consolo, Palocci, diferente de Collor,  está preso, eis que, corrupto reincidente, foi condenado na Lava Jato.

Agora denúncias de dois motoristas complicam a posse como ministra do Trabalho da deputada  Cristiane Brasil, que descumpriu a legislação trabalhista na relação com os dois profissionais. A deputada violou uma regra básica: os motoristas, que tudo ouvem e a tudo assistem, são cargos de confiança por excelência e como tal devem ser tratados.

Eu poderia falar também do papel desempenhado por ex-mulheres, ex-namoradas e ex-amantes no esclarecimento dos grandes escândalos nacionais, mas não o farei justamente para não diminuir a participação dos motoristas nesses casos. Eles são movidos certamente por espírito cívico, enquanto elas...

sábado, 6 de janeiro de 2018

6.8 : Voces ainda vão ter que me aturar


Ao completar 6.8, ainda em estado de seminovo, admito que tenho cuidados redobrados  ao atravessar as ruas e avenidas mais movimentadas. Meu grande temor é o vexame da manchete do dia seguinte, algo do tipo “Sexagenário atropelado por ciclista”.  Parece que o termo sexagenário está em desuso na nossa imprensa e aí o editor maldoso vai apelar para uma solução mais vexatória, se o acidente ocorrer num bairro mais distante do Centro Histórico: “Carroça atropela idoso na Aberta dos Morros”.  Convém lembrar que Aberta dos Morros é um dos tantos bairros que aparecem nas minhas correspondências e por aqui ainda circulam carroças. E aí mora o perigo.



A preocupação que me leva a fazer essa advertência tem a ver também com o pessoal que costuma pular a cerca: cuidado com a manchete do dia seguinte.  Vai que o marido descornado resolva, como se dizia antigamente, “lavar a honra” e o faça com um 38 carregado de balas.  Aposto que a manchete do dia seguinte vai falar em “crime passional”.  Se você tiver a sorte de escapar vivo ainda vai ter que dar muita explicação porque a humilhação já estará espraiada.  Entretanto, podia  ser pior caso o lavador da honra fosse você e, bem pior , se fracassasse na vindita.  A manchete do dia seguinte só poderia ser essa naquele jornal popular:  “Corno, vingativo e ruim de pontaria”.



Penso que é inevitável  associar essas divagações àquelas homenagens que podem se eternizar e sobre as quais não teremos nenhum controle no futuro. Acredito mesmo que, se pudessem escolher, Rubem Berta e Mário Quintana, por exemplo, evitariam batizar com seus afamados nomes duas comunidades de Porto Alegre onde campeia a violência, com todo o respeito às famílias lá residentes, que também são vítimas da bandidagem local.



Fico imaginando -  até já escrevi sobre isso - se algum puxa saco resolver  me homenagear quando eu partir dessa para outra dimensão e batizar aquele beco perdido no cafundó do judas de Travessa Flávio Dutra e vale também para outros espaços públicos. Já estou até vendo as manchetes e títulos dos tabloides populares: “Traficantes tomam conta do Beco Flávio Dutra”,  ou “Prostituição infesta praça Flávio Dutra”,   ou a pior  - “Ninguém aguenta mais o mau cheiro da Flávio Dutra”.  Certamente vou me remexer na cova.  O que me conforta é que ainda vai demorar muito até eu merecer uma placa em logradouro público. Como diria mestre  Zagalo, “vocês vão ter que me aturar”