* Publicado nesta data em coletiva.net.
Estamos vivendo a era de
fortes confrontos de ideias e polarização extremada de posições, mas ainda
existe espaço para o bom e honesto cinismo. Bom e Honesto, aqui, com sentido de
generosidade, um cinismo pra não magoar.
Há pelo menos duas
situações clássicas em que o cinismo se manifesta em seus melhores momentos.
- Não leve a mal, porque é uma critica construtiva.
- Respeito muito tua
posição, mas...
No primeiro caso, a
advertência é seguida de uma crítica demolidora, que joga pra baixo o alvo da
manifestação, só que atenuada pela tal crítica construtiva e o criticado nem se
anima a reclamar. Não adianta, gente, critica é crítica e sua versão
construtiva é uma balela.
A posição respeitada, no
segundo caso, sobrevive apenas à primeira frase do contraditório, sendo
desconstruída – ou destruída - na sequência. Respeito, uma ova!
E tem aquela muito usada
para romper relacionamentos, sem provocar grandes ressentimentos: “O problema
não é contigo, é comigo”. Pura falsidade!
No andar de cima o
cinismo campeia e atinge o estado da arte. No STF, cada voto por “ “amor à Constituição”, como diria aquele
primo do Collor, na verdade, parece esconder a defesa de interesses pra lá de questionáveis. No parlamento, aqueles
“Vossa Excelência” quando dirigidos à adversários políticos são o que há de
enganadores. Mais do que tratamento
cerimonial exigido pelo protocolo, representam embuste em grau máximo. Não é o que ocupante da tribuna pensa daquele
“salafrário, que eu conheço bem”, que agora está a contestá-lo. O protocolo é o cinismo institucionalizado.
Esse pessoal até poderia
dar aula ao presidente Bolsonaro, que não tem o mínimo de refinamento na
aplicação do cinismo, tanto no trato com adversários como com os companheiros. Bolsonaro surpreende -
aliás, nem surpreende mais – por ser direto e transparente. Não tomem isso como
elogio, apenas é o reconhecimento de uma situação de fato.
Em se tratando de cinismo, o correto seria olhar
para a Grécia antiga, onde os cínicos
eram conhecidos por desprezarem as
convenções sociais. Pessoas de vida errante, maltrapilhas, empenhavam-se em discursar contra os
valores morais da sociedade da época. Era uma corrente filosófica que
tinha em Diógenes (século IV, a.C), apelidado de O Cínico, seu
representante mais expressivo. Diógenes procurava
a virtude de uma vida simples e natural, dessa simplicidade e
espontaneidade de que são feitas as pessoas do bem, diferente da análise do filósofo
alemão Peter Slotedijk. Em “Crítica à razão cínica”, de 1983, ele descreve o
cinismo da sociedade contemporânea como
reflexo de um individualismo extremo que o cenário mundial delineou para todos.
Vale lembrar que Slotedijk esteve em
Porto Alegre, em 2016, no Fronteiras do
Pensamento.
A análise dele se aplica
integralmente ao Brasil atual, um país
dividido em todos os níveis, pleno de intolerâncias, carente de
lideranças confiáveis, terra do vale-tudo, de tênues barreiras entre o certo e
o errado e onde o cinismo nas relações parece ser o sentimento unificador.
Pensando bem, de forma
pragmática, talvez seja melhor assim. Nestes tempos conturbados em que vivemos
já estou achando, em favor de um pouco de leveza no quotidiano, que uma boa
dose de cinismo é necessária para o país e mal não faz. Assim, sai de cena o brasileiro cordial de
Sérgio Buarque de Holanda e entra o brasileiro cínico da era bolsonarista e
pós-PT. Vai ver são da mesma matriz.