* Inspirada em fatos reais
Os carnavais de Porto
Alegre são fonte de muitas histórias que vão além dos chamados festejos
momescos. São histórias de paixão de mestres-salas e porta-bandeiras, de piratas do
amor e mascaradas enfeitiçadas, de passistas e batuqueiros da emoção, de reis e
rainhas disponíveis para uma noitada ou até mesmo entre assistentes mais
afoitos. O Porto Seco, sambódromo na zona Norte de Porto Alegre, tem muitos
refúgios à espera dos amantes. Para esses personagens a noite é sempre criança, a vida é um eterno Carnaval e
as relações que se entrelaçam produziriam animados sambas-enredos.
Os desfiles, mesmo
repetitivos e cansativos, propiciam novos relacionamentos conectando os
figurantes da pista entre si ou com os observadores das arquibancadas. Aquele
olhar mais persistente e incisivo garante um encontro mais adiante e
promissores reencontros. Ah, eu já vi tanta coisa.
Foi o que aconteceu com
nosso amigo Breno, atilado repórter de tradicional emissora da Capital,
escalado para a cobertura dos desfiles do grupo principal do Carnaval do Porto
Seco. O posto dele era a concentração e isso lhe garantia a proximidade com os
integrantes de todas as alas, mas especialmente com os destaques das escolas e,
mais especialmente ainda, com a profusão de destaques femininos. Nesse espaço
de tentações o inevitável aconteceu: Breno fixou o olhar na deslumbrante rainha
de bateria, uma descomunal morena, adornada por um minúsculo tapa-sexo, moça
sarada de pernas alongadas, bumbum saliente, seios tipo comissão de frente. Foi
encantamento à primeira vista e, melhor ainda, correspondido por aquele
verdadeira majestade dos requebros do
samba. Iracema era o sugestivo nome da
deusa.
Naquela noite mesmo,
ele deu um jeito de trocar de posição com o repórter escalado para a dispersão
e assim que terminou o desfile da escola
de Iracema, lá estava ele a postos para a
entrevista “com a mais bela rainha de bateria de nosso carnaval”, como
anunciou, sem precisar exagerar. A entrevista excedeu o tempo previsto, mas a
moça estava receptiva às perguntas do enamorado repórter e respondeu a tudo de
pronto, mesmo as questões de duplo sentido, que buscavam salientar os dotes
físicos da agora rainha do seu coração.
Entretanto, não foi
nessa noite que o casal em formação realizou na prática o enredo erótico para o
qual estavam destinados. É que havia um terceiro personagem, como no triângulo
amoroso envolvendo Arlequim, Pierrô e Colombina. O companheiro de papel passado da colombina do Porto Seco era o puxador
de samba de uma escola adversária, que logo encostou na moça, como se fosse
propriedade sua e precisasse demarcar o espaço para evitar a aproximação de
eventuais interessados em dividir aquele corpão. Era um moreno atarracado,
bombado de academia e dono de uma voz forte e bem modulada, como se requer para sustentar o samba na avenida.
Fisicamente, Breno, de
estatura mediana, nem magro, nem gordo, não seria páreo num enfrentamento às
ganhas com o sujeito das cantorias, agora um adversário a ser batido na disputa
pelo coração e algo mais da rainha de bateria.
A vitória do desafiante
aconteceu no fim de semana seguinte, no desfile
das campeãs. A escola da moça se classificara entre as primeiras e o
destino mexeu os pauzinhos e deixou fora do desfile a escola do puxador, que
teve notas baixas inclusive no samba enredo. Tudo conspirava a favor de uma
noitada inesquecível. O melhor da festa é esperar por ela, diz o ditado, e
assim foi para Breno, pura ansiedade e tesão ao ver passar a escola de sua nova
amada e ela saracoteando, cheia de
energia e erotismo, em frente ao frenético baticumbum da bateria. Assim que
terminou o desfile ele abandonou o posto na transmissão e se apresentou à musa.
Sem trocarem uma palavra sequer, rumaram já num agarramento para o barracão da
escola e num canto reservado, protegidos por um grande carro alegórico, eles se
empenharam em não atravessar a relação. Com receptividade dela e entusiasmo
dele, foram percorridas todas as alas daquele corpão.
- No início pensei que
não ia dar conta de todo aquele esplendor de mulher, mas me superei e consegui,
com louvor. Claro que ela ajudou e como! -, confessou ele mais tarde.
A transa só não teve
repeteco naquela noite porque o maridão,
derrotado na avenida e traído na vida conjugal,
já procurava Iracema, que logo se recompôs para não dar na vista o que
tinha ocorrido atrás do carro alegórico. Mas começava ali um período glorioso de escapadas. E Breno se
superando a cada encontro, porque a sensação de perigo e de contravenção
aumentava o entusiasmo, mesmo que ele descobrisse mais tarde que o parceiro
oficial da namorada parecia não se importar muito com as aventuras
extraconjugais de Iracema, já que frequentava outras amizades femininas em
várias escolas, do grupo principal ao acesso, passando por outras índias das
tribos que ainda sobreviviam.
Não cabe entrar em
detalhes mas a dupla se esbaldou por todos os cantos da cidade, numa maratona
de motéis, apartamentos emprestados e até nos bancos da maltratada Brasília
dele. Viviam o êxtase dos casais recém formados e nessa condição trocavam
amabilidades bobas. Ela o chamava, por exemplo, de “meu repórter tesudo” e ele
devolvia com um “cabrocha arretada”,
mesmo que a referência a “brocha” pudesse remeter a uma lembrança incômoda, mas
os temores dele nesse sentido foram afastados desde o primeiro encontro. Na verdade, era uma forma de
afirmação, admitiu depois.
Quem se importava com
este relacionamento era a mãe do Breno.
Jovem ainda, ele morava com a família. Uma família conservadora, que não admitia
uma relação entre homem e mulher que não fosse dentro do casamento, no civil e
no religioso. A mãe, senhora de comportamento ilibado, diferente do rebento
trêfego, era a zeladora dos bons costumes. E foi dela que partiu um ultimato ao
Breno: ou parava com a relação pecaminosa ou não teria mais lavadas e passadas
suas camisas, roupas compradas com muito esforço e conservadas com carinho. Mais:
ameaçou nunca mais fazer aqueles bifes à
milanesa e a sobremesa de ambrosia que tanto agitavam as papilas gustativas
dele.
Breno não atendeu ao
ultimato, se rebelou ostensivamente e continuou frequentando sua colombina, em
sucessivos eventos pós-Carnaval, apelidados de “festivos e agitados enterros
dos ossos.” Mas já não mostrava a mesma alegria de antes, virou melancólico, quase depressivo,
enquanto se queixava para os amigos mais íntimos:
- Ninguém passava
minhas camisas como mamãe. Virei um molambento. E o rango lá em casa é só miojo
ou carreteiro e sagu de sobremesa. Bah, tá complicada minha vida.
Não demorou muito, o
que era uma linda história de amor, acabou encerrada diante do boicote dos
serviços prestados pela mãe do rapaz. E Breno, de esperto Arlequim, virou um
Pierrô, o mais pobre dos personagens desta intriga amorosa inspirada na
Commedia dell’Arte e só não vestiu
roupas feitas de saco de farinha, como
na encenação original, porque a mãe voltou a lavar e passar suas camisas com o
fim do caso. Já a nossa Colombina, ao que
consta, voltou para seu Arlequim original, à espera de novos carnavais e do assédio de
outros Pierrôs. Só que agora não saracoteia mais diante da bateria, eis que os
anos pesaram e ela foi transferida para a ala das baianas. Para Bruno, hoje
recatado cidadão, restaram somente as lamurias nostálgicas:
-Ah, já não se fazem
mais Carnavais como antigamente. Agora, todo dia é Quarta-feira de Cinzas.